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Marcel Dirsus: para ser um ditador "é preciso ter algum grau de insanidade"

Débora Calheiros Lourenço
Débora Calheiros Lourenço 30 de janeiro de 2025 às 08:00
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O especialista em regimes instáveis e violência política estudou em Oxford e trabalhou na República Democrática do Congo durante um golpe falhado, experiência que fez com que focasse a sua investigação em regimes autocráticos.

"Dizemos vezes sem conta que os conflitos não podem ser resolvidos pela força que, para vencer um conflito, é preciso conquistar corações e mentes. Para nós, até certo ponto, é verdade, porque estamos limitados pela nossa ética, mas se pensarmos como ditadores, alguém como Assad, Putin ou Kim Jong-un, é óbvio que é possível ganhar guerras sem vencer os corações das pessoas, se conseguirmos manter uma violência horrível durante um longo período, podemos bombardear as pessoas até à submissão, mesmo que elas nos odeiem", refere Marcel Dirsus, especialista em regimes instáveis e violência política e conselheiro da NATO e OCDE, àSÁBADO

Em entrevista por Zoom, o autor de Como Caem os Tiranos E como Sobrevivem as Nações, livro que foi este mês publicado em português, fala sobre como é que as ditaduras são construídas e como são mandadas abaixo.

O que faz com que algumas ditaduras durem mais do que outras?

A principal ameaça para a maioria dos ditadores vem do interior. Por isso, o que dita o sucesso de uma ditadura não são as grandes massas, mas sim as pessoas que são próximas do regime. Os países mais eficazes compreendem que têm de cuidar dos elementos internos do regime. Seja dando-lhes algo que eles querem ou dizendo-lhes que, se saírem da linha, serão castigados. 

O que é que um político precisa de ter para ser um bom tirano? 

Para se ser um ditador, não é possível ser uma pessoa normal porque um ditador tem de ser capaz de fazer coisas horríveis com regularidade. Um dia, podem estar a ter uma conversa com alguém e nessa mesma noite, pode estar a ordenar a sua morte, a atacar mercados, a atacar hospitais. Para fazer isso não se pode estar bem da cabeça, é preciso ter algum grau de insanidade. Uma coisa que também ajuda é ter um sentimento de paranoia, estas pessoas estão constantemente rodeadas de ameaças e precisam de estar conscientes delas. Ainda assim existe uma linha muito ténue onde os ditadores podem estar porque também precisam de alguma racionalidade. Quando olhamos para alguém como Putin ou Kadhafi pensamos que estas pessoas perderam completamente o juízo, mas na realidade não é assim porque se perderes a cabeça, se te desligares da realidade, vais perder o poder. Dou um exemplo no livro de alguém que realmente perdeu completamente a cabeça, um ditador da Guiné Equatorial chamado Francisco Macías Nguema. Estava tão doente que perdeu completamente o contacto com a realidade, andava pelo seu complexo a gritar nomes das pessoas que tinha matado, pedia aos empregados que pusessem a mesa para 8 convidados e, quando ninguém chegava, falava com os convidados como se eles estivessem lá. Nessa situação, os líderes à sua volta decidiram muito rapidamente que precisavam de se livrar dele, porque ele já não conseguia distinguir entre ameaças reais e imaginárias. 

O que leva alguém a querer ser um ditador?

Existem várias razões, mas obviamente os ditadores são movidos a ambição porque muitas vezes são as pessoas mais ricas do seu país, há muitas oportunidades para roubar as pessoas e o Estado. É óbvio que muitas destas pessoas também são motivadas pelas suas queixas, é possível que tenham sido maltratados pelo regime anterior, é possível que nas sociedades em que se encontram não exista uma maneira de progredir se não se estiver envolvido na política. Muitas das pessoas que se tornam ditadores não cresceram necessariamente em democracias liberais prósperas e com bom funcionamento, então mais vale tentar tornar-se esse ditador. 

No livro, dá muitos exemplos de países africanos e asiáticos. É mais comum haver tiranos em países em desenvolvimento?

No que diz respeito a África, em particular, os países têm muitas desvantagens, uma das que abordo no livro é a ligação entre o Estado e as forças militares. Durante o período colonial, as potências coloniais asseguraram deliberadamente a existência de divisões nas suas colónias, se uma etnia dominasse a função pública, outra dominaria as forças armadas e dentro das forças armadas os soldados até podiam ser colonos, mas nunca seriam os locais a comandar. Assim, na altura da independência, a grande maioria dos oficiais das forças armadas africanas eram oriundos das potências coloniais e muitos deles tiveram de descobrir como evitar ser derrubados pelo seu próprio povo, o que os colocou no caminho da instabilidade política e das autocracias durante um longo período. Outra coisa importante é que o petróleo, os diamantes e os recursos naturais são os melhores amigos dos ditadores. No Luxemburgo ou nos Países Baixos, não há recursos naturais a que se possa recorrer, mas em muitos países em vias de desenvolvimento, existem muitos. Pode haver petróleo, pode haver diamantes, pode haver qualquer outra coisa que as pessoas realmente queiram e isso é muito propício à ditadura. 

[perante protestos não violentos] regimes que parecem muito poderosos podem ser extremamente frágeis e entrar em colapso

Marcel Dirsus, autor do livro "Como Caem os Tiranos E como Sobrevivem as Nações"

Para as populações existem coisas mais importantes do que viverem em democracia?

Estes ditadores gastam muito tempo e muitos recursos para se certificarem de que as pessoas não saem para a rua, porque as ditaduras funcionam com base na perceção de força e na perceção de inevitabilidade. Se as massas estiverem nas ruas o regime parece fraco e isso é um convite para que outras pessoas dentro do regime tentem destituí-lo. A melhor maneira de derrubar um ditador, se quisermos um resultado sustentável, é através de protestos não violentos. Mas o problema é que muitos destes regimes mais destrutivos estão tão enraizados e tiveram tanto tempo para se prepararem que se torna extremamente difícil mobilizar efetivamente as pessoas e levá-las para a rua.

Kim Jong-un não vai ser derrubado através de protestos não violentos, porque os protestos não violentos são praticamente impossíveis na Coreia do Norte onde não há meios de comunicação social livres, não há internet gratuita, se protestar pode acabar num gulag, há castigos que atravessam gerações. Por isso, mesmo que houvesse um protesto a probabilidade de se espalhar era incrivelmente pequena, porque as outras pessoas nunca saberiam de nada. É fácil dizermos que as pessoas deviam protestar mais contra Putin, mas a realidade é um pouco diferente.

Como é que os protestos não violentos conseguem deitar abaixo uma ditadura?

Uma coisa que acho bastante animadora é a importância do protesto não violento, vemos estes ditadores horrendos rodeados de soldados, de tanques e, no entanto, depois são derrubados por professores, reformados, adolescentes que marcham nas ruas. A forma como isso funciona é bastante fascinante porque, se conseguirem mobilizar um número suficiente de pessoas nas ruas, é possível forçar o regime a decidir se recorre ou não à violência. Se não recorrerem à violência, parecem fracos, o que é algo que não querem fazer porque, pode levar mais pessoas às ruas. Mas se recorrerem à violência, há a possibilidade de o regime se desmoronar sob o peso da sua própria repressão, porque nem toda a gente no regime quer alinhar com ela. Pode acontecer um general recusar a ordem, os soldados recusarem-se a cumpri-la, é preciso que haja pessoas que não se importem de disparar. É nesses momentos que regimes que parecem muito poderosos podem ser extremamente frágeis e entrar em colapso e, para mim, isso é inspirador.  

Ainda este fim de semana, Lukashenko ganhou as eleições da Bielorrússia com 87% dos votos. Porque é que estes regimes mantêm aspetos que os aproximam dos sistemas democráticos como eleições ou vários meios de comunicação?

Há duas razões: a primeira, é por uma questão da legitimidade, uma espécie de legitimidade falsa, que faz com que se realizem eleições e sempre com bons resultados porque, se o fizerem, podem dizer ao povo e à comunidade internacional que têm apoio popular, que foram devidamente eleitos. É óbvio que toda a gente sabe que é manipulado e que não se trata de uma eleição livre e justa, mas, ainda assim, facilita as coisas para as elites do regime; a segunda razão é bastante contraintuitiva: muitas vezes estes regimes realizam eleições porque isso lhes permite recolher informações. Um dos grandes problemas que os ditadores enfrentam é que toda a gente lhes mente constantemente. Estão rodeados de "yes men's" que lhe dirão o que quiserem ouvir e, com o passar do tempo, corre-se o risco de se ficar cada vez mais afastado das ameaças reais e uma das formas de recolher informação é através de uma eleição. Pode existir um movimento de oposição que não estava previsto e que, de repente, obtém, 3 ou 4% ou até numa região específica consegue atinge os 10% e assim o regime consegue ter conhecimento sobre ele. 

Vemos que as democracias ocidentais estão completamente à vontade para lidar com muitas ditaduras Marcel Dirsus, autor do livro "Como Caem os Tiranos E como Sobrevivem as Nações"

É por causa desse desconhecimento que existem revoluções rápidas e aparentemente imprevisíveis como aconteceu na Síria?

Nas ditaduras, há uma linha muito ténue entre a aparente estabilidade e o caos absoluto. Tudo se baseia nesta perceção de força e de inevitabilidade, um ditador não perde apenas um bocadinho, quando perde, perde tudo de uma vez. As pessoas que serviam Assad não o faziam porque ele era um grande líder e porque se sentiam inspiradas por ele ou porque há um projeto ideológico que lhe dá legitimidade, os oficiais dos serviços secretos comuns fizeram-no porque não queriam ir para a prisão e não queriam morrer. Foi por isso que assim que os capangas de Assad ficaram com a impressão de que o líder iria perder o deixaram cair. Há ainda outra questão, em que as pessoas não pensam o suficiente, as ditaduras personalistas são incrivelmente más a lidar com a sucessão. Muito raramente existe um processo ordenado para determinar o que acontece a seguir, o que se vê, a maioria das vezes, é que todo o sistema se incendeia completamente e tudo se torna totalmente caótico. 

Os EUA e a União Europeia intitulam-se de exportadores da democracia, mas na realidade vemos que mantém relações próximas com alguns regimes autoritários. Como é que as democracias lidam com as autocracias?

Deixem-me colocar a questão desta forma, quando os líderes ocidentais falam da importância da democracia na televisão, agem de forma muito diferente quando as decisões são efetivamente tomadas? Grande parte da política internacional tem a ver com a promoção de interesses, há alguns países que são rivais, alguns que são adversários e há alguns com os quais queremos trabalhar muito de perto. É bastante raro que os países ocidentais decidam algo apenas com base no avanço da democracia ou não. Se for um dirigente eleito há muito em jogo, é muito difícil convencer os eleitores de que se pretende fazer algo tendo em mente apenas a democracia, porque pode ser extremamente dispendioso, tanto em termos de sangue como em termos de dinheiro. O melhor exemplo é que querer levar a democracia para outros países pode levar à guerra e se formos para uma guerra não só há muitas pessoas que vão morrer como vai ser incrivelmente caro. Por isso, na mente de muitos líderes eleitos, não vale a pena fazer isso se se trata apenas de levar a democracia para outro lugar, é preciso uma razão melhor e essa razão é normalmente a segurança nacional. Quando isso não é uma realidade vemos que as democracias ocidentais estão completamente à vontade para lidar com muitas ditaduras. Estaríamos a mentir a nós próprios se disséssemos que isto não acontece.

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