Sábado – Pense por si

Padre Anselmo Borges: "Francisco era o Papa das periferias"

O professor da Universidade de Coimbra, filósofo e padre católico acredita que Francisco será lembrado pela defesa da paz, fraternidade e ecumenismo, bem como das "periferias geográficas e existenciais".

Segunda-feira foi um dia triste para Igreja Católica, e em especial para a ala reformista da instituição, que tinha noPapa Francisco (1936-2025)a sua mais proeminente voz. Anselmo Borges, padre, professor e filósofo português, conta-se entre essas vozes, criticando a Igreja pela persistência do que considera injustiças para com o celibato obrigatório do clero ou a exclusão de mulheres de celebração da eucaristia. Celebra, ainda assim, o legado de Francisco na promoção da paz e da fraternidade, do diálogo interreligioso, dos avanços sociais e do combate à pedofilia, e acredita que, ainda que possa haver "tentativas de retrocesso", "a Igreja de Francisco continuará".

Que legado deixa o Papa Francisco?

Para mim, ficará na história, não apenas por aquilo que fez em ordem a uma revolução dentro da Igreja Católica, mas por toda a sua influência no mundo. Era uma figura querida por crentes e não crentes, um papa que constituía uma figura político-moral global, talvez a figura mais influente nesse sentido. Estava permanentemente a insistir na fraternidade e na paz, e tantas vezes falou contra os milhões para o armamento, que poderiam estar a ser utilizados para acabar com a fome no mundo ou o analfabetismo. Clamava contra uma economia que mata. Fica na história como o papa do ecumenismo - não é por acaso que escolhe o nome Francisco, em homenagem a S. Francisco de Assis e a sua máxima de "reparar a igreja". Fica na história, em última análise, como o papa das periferias geográficas - optou por visitar países esquecidos, sem grande relevância internacional - mas também das periferias existenciais, defendendo que a Igreja deveria estar aberta a todos. Em Fátima, dizia, olhando para a capelinha das aparições, que estava ali a figura da Igreja: sem muros, sem portas, aberta a todos.

Há a ideia de um papa progressista e liberal, mas também a noção de que não foi longe o suficiente, como, por exemplo, na questão da igualdade das mulheres na Igreja.

O Papa Francisco avançou reformas profundas dentro da igreja, implementou uma política de tolerância zero à pedofilia, declarou o clericalismo como uma peste, tentou por ordem na Cúria Romana - há discursos em que chega a falar de esquizofrenia dentro da Cúria. Havia escândalos financeiros dentro do banco do Vaticano, e ele instituiu regras. Acabou recentemente por colocar uma ministra na Cúria, pôs uma mulher como governadora do Estado do Vaticano. Mas algumas coisas ficaram por realizar: reconheceu que o celibato não é imperativo, mas não ousou acabar com o celibato obrigatório dos padres, e, por outro lado, as mulheres continuam a não poder presidir à Eucaristia. São duas carências que ficam no pontificado de Francisco.

E em relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo?

Apesar de tudo, creio que é o papa da inclusão: começou logo no princípio do pontificado, há 12 anos, a dizer "quem sou eu para julgar os homossexuais?", e mais recentemente permitiu uma bênção para casais do mesmo sexo. De facto, ficaram coisas por realizar, mas a mudança na Igreja depende de cada um dos seus membros. Só vai haver uma verdadeira revolução no dia em que cardeais, bispos, monsenhores, padres e os católicos em geral se perguntarem a si próprios: "Isto é bom para mim? Em que é que acredito?". A fé cristã é um ato pessoal de confiança no Deus de Jesus, cujo nome, segundo Francisco, é "Misericórdia".

Acha que foi feito o suficiente em relação aos escândalos sexuais que praguejaram a Igreja?

O Papa Francisco disse o que era preciso fazer: acabar com a peste do clericalismo, e tolerância zero para a pedofilia, o abuso de poder e o abuso de consciência. Houve, inclusivamente, pelo menos um cardeal que foi destituído. O último sínodo, sobre a própria sinodalidade, já teve a presença de mulheres com voz e voto. Portanto acho que o Papa encaminhou a Igreja no caminho certo. Ficaram por realizar a questão celibato, que não pode ser instituído como lei, e a discriminação das mulheres, que é contra os direitos humanos. Jesus não as discriminou, tinha discípulos e discípulas.

Como olha para a postura política de Francisco, que contrastou com alguns dos seus predecessores?

A postura de Francisco era claramente mais interventiva, mas sempre pugnou pela paz e pela união - mesmo nas últimas palavras que disse, no domingo, apelou à paz em Gaza. Todos os dias telefonava para a comunidade de Gaza, enviou representantes à Ucrânia e cogitou ir a Moscovo. No Sudão, chegou a pôr-se de joelhos diante de governantes para que restabelecessem a paz. Na dimensão do ecumenismo, visitou países de maioria islâmica e vincou a importância de estabelecer o diálogo ecuménico e interreligioso em prol da paz global. E na dimensão ambiental, toma o nome de Francisco não apenas para reparar a Igreja e reformar o que é preciso reformar: S. Francisco de Assis era o grande cantor da natureza, e o papa deixou uma encíclica, Laudato si', a favor da ecologia e da preservação da natureza como a nossa casa comum, prevenindo contra a crise climática.

Acredita que o novo pontificado representará uma reação da fação conservadora da Igreja ou a continuação do caminho traçado por Francisco?

Agora, haverá uma série de encontros, influências e mesmo intrigas, mas tenho a convicção de que não haverá retrocesso no essencial. Teremos um novo conclave daqui a um mês, e a única coisa que lhe posso dizer é que gostaria que o novo papa fosse asiático - mais concretamente, o cardeal Luis Antonio Tagle, que já foi presidente da Caritas Internacional e em quem o Papa Francisco confiava, e que hoje trabalha na Cúria à frente da Congregação para a Evangelização. Neste mundo global, a Igreja precisa de se ver a si mesma com outros olhos, a partir de outras culturas. Estou convencido que haverá tentativas de retrocesso, mas gostaria que não se voltasse atrás nas posições do Papa Francisco: uma Igreja sinodal, em que todos são co-responsáveis. Julgo que, no essencial, a igreja de Francisco continuará com estas características, e vai evoluir para ser cada vez mais aberta a todos, especialmente aos mais fracos e vulneráveis.

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