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João Perestrelo: "A religião constitui um dos mais sólidos fatores de proteção da saúde mental"

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Há cada vez mais jovens em sofrimento psicológico e temos de criar ferramentas para ultrapassar esta situação, alerta o psiquiatra.

Seguir influencers pode ser tóxico e temos de aprender a lidar com o sofrimento. No Dia Internacional da Saúde Mental, que se assinala esta sexta-feira, 10 de outubro, falámos com o psiquiatra João Perestrelo que acaba de editar Aprender a Andar no Escuro - Da ciência à prática de viver com menos sofrimento, pela Contraponto. O médico, fundador da clínica Mind House, no Porto, dedicada à saúde mental, alerta para a tendência de se "medicar as emoções" e que devemos procurar ajuda especializada. Defende que a religião e a espiritualidade têm influência na saúde mental e que "não existem influencers no sentido saudável do termo." 

Jovens enfrentam sofrimento psicológico crescente, com impactos na saúde mental
Jovens enfrentam sofrimento psicológico crescente, com impactos na saúde mental

João Perestrelo destaca ainda que há cada vez mais jovens em sofrimento psicológico e que "este aumento não é apenas um fenómeno clínico, mas sobretudo social". Vivemos vidas tão aceleradas que isso compromete a nossa saúde. E dá exemplos das consequências da ansiedade: doenças cardiovasculares, gastrointestinais, dores crónicas, enfraquecimento do sistema imunitário e até maior vulnerabilidade a perturbações do humor, como depressão e burnout.

Promete no livro: "o antídoto para uma vida sem sofrimento"? É possível?

O prefácio do livro termina, de facto, com a frase “O antídoto para uma vida sem sofrimento? A cura de toda e qualquer afeção mental? Bom, se existir, estará nas próximas páginas”, contudo tem tanto de provocatório quanto de irreal e é exatamente isso que o leitor constatará à medida que navega pelos capítulos. Desde a universalidade do sofrimento, à constatação de que é impossível controlar o que nos sucede, o leitor é convidado a mergulhar na confrontação, e quiçá na aceitação radical, de que todo o ser humano nasce com uma vulnerabilidade inata. Contemplar essa vulnerabilidade na imensidão do que somos talvez seja um “antídoto” não para a cessação do sofrimento, mas para a sua “melhor” vivência.

Porque vivemos com tanta ansiedade?

Porque existimos. A resposta poderia ser tão simples quanto isto, contudo creio ser útil detalhar um pouco mais. Enquanto seres vivos, possuímos mecanismos biológicos altamente eficazes de deteção e defesa perante o perigo. O mecanismo do stresse é um exemplo claro disso mesmo. Aqui torna-se evidente o que referi anteriormente: se o stresse é inevitável - e se um dos seus resultados psicológicos é o sofrimento - então iremos, inevitavelmente, sofrer em algum grau. Contudo, o ser humano evoluiu de forma distinta dos restantes animais. Dotado de um córtex altamente desenvolvido, é capaz de refletir sobre as situações que vive, processo a que chamamos ruminação. É precisamente essa ruminação mental que alimenta respostas de stresse crónico, mantendo o organismo em alerta constante. A ansiedade nasce, assim, da perceção de ameaça sem a presença real da mesma.

Se, enquanto homens das cavernas, tínhamos de fugir a predadores, sobreviver a pragas e enfrentar um sem-número de perigos “reais”, este mesmo mecanismo - inscrito nas nossas células e transmitido de geração em geração - torna-se, hoje, desajustado. Já não existem tigres-dente-de-sabre, mas existem exames, prazos, patrões e doenças que nos afligem como se fossem ameaças à sobrevivência, ativando as mesmas respostas fisiológicas de alarme, como se estivéssemos em perigo de vida iminente.

De que forma tem impacto na nossa saúde física?

É uma questão complexa. De forma resumida, podemos dizer que a ansiedade afeta praticamente todos os grandes sistemas do organismo: o imunológico, o cardiovascular, o musculoesquelético e o nervoso. A comunicação entre o cérebro e o corpo é mediada, em grande parte, pelo nervo vago - o maior nervo do nosso organismo. É ele que traduz a atividade cerebral em respostas fisiológicas concretas: aceleração do coração, tensão muscular, alterações respiratórias, digestivas e até imunológicas. Quando o sistema nervoso se mantém em alerta constante, o corpo interpreta esse estado como se estivesse continuamente em perigo, mesmo quando não há ameaça real.

Uma das hipóteses mais relevantes da medicina atual é a hipótese inflamatória do stresse que nos diz que o stresse crónico ativa cascatas de hormonas e neurotransmissores - como o cortisol e a adrenalina - que, em excesso e de forma prolongada, geram um estado inflamatório sistémico. É esta inflamação persistente que está associada a doenças cardiovasculares, gastrointestinais, dores crónicas, enfraquecimento do sistema imunitário e até maior vulnerabilidade a perturbações do humor, como depressão e burnout.

O que podemos fazer para mudar essa sensação?

A sensação? Absolutamente nada. Não é possível mudar uma sensação que existe precisamente para ser sentida. É a sensação de ansiedade que me permite reconhecer que estou num estado de alerta, que algo em mim percebe perigo ou ameaça. Desligar esse mecanismo seria, em última instância, abrir caminho para a aniquilação da espécie humana - perderíamos o sistema que nos protege.

O que podemos, sim, é mudar a relação que temos com a sensação. Aprender a distingui-la do perigo real, a reconhecer que nem toda a ativação do corpo significa catástrofe. A ansiedade não precisa de ser eliminada, mas antes compreendida, contextualizada e regulada. O trabalho não é extinguir o medo, mas encontrar segurança dentro dele; e aqui sublinho a palavra segurança, porque é disso que verdadeiramente precisamos. Desengane-se quem acredita que o oposto da ansiedade é o relaxamento. O antídoto é a segurança - física, emocional e relacional. É isso que permite ao corpo sair do estado de ameaça e regressar à presença.

O psiquiatra João Perestrelo acaba de lançar o livro Aprender a Andar no Escuro
O psiquiatra João Perestrelo acaba de lançar o livro Aprender a Andar no Escuro

De que forma podemos ter uma ansiedade saudável?

Cultivando presença na emoção. Quando compreendemos que a ansiedade - enquanto emoção complexa - não é boa nem má, mas simplesmente uma expressão do medo, deixamos de vê-la como sinal de fraqueza. Incontáveis vezes ouvi pacientes dizerem “sou fraco psicologicamente”, quando, na verdade, estavam apenas a experienciar algo intrinsecamente humano.

Uma ansiedade saudável nasce da segurança - e esta constrói-se através de vínculos seguros, de relações que oferecem afeto, pertença e presença. A teoria psicanalítica já nos dizia que adoecemos em relação e que nos podemos curar na relação, e a clínica comprova-o: crianças que crescem em ambientes inóspitos, marcados por violência, negligência emocional ou escassez de cuidado, desenvolvem sistemas nervosos moldados pela sobrevivência. A isso chamamos “trauma” e o caminho da “cura” passa por reaprender segurança, muitas vezes começando na relação terapêutica, que se torna o primeiro porto seguro encontrado.

Mas esta regulação não é apenas psicológica, envolve também o corpo. O eixo intestino–cérebro tem papel central na regulação emocional; o exercício físico ajuda a libertar tensão e equilibrar o sistema nervoso, e o respeito pelos nossos limites - físicos e psíquicos - é a base de uma vida com mais estabilidade interna.

Porque é que a opinião dos outros tantas vezes nos incomoda?

Porque somos, antes de tudo, seres de relação e é através das relações que nos moldamos. A teoria da mente explica isso mesmo: desenvolvemo-nos com base na perceção que temos do olhar do outro sobre nós. No entanto, certas vulnerabilidades psicológicas, muitas vezes enraizadas em experiências precoces de invalidação ou crítica, podem tornar-nos mais suscetíveis à opinião alheia. Quando, em criança, aprendemos que só seremos amados se agradarmos, crescemos com a ideia de que a aceitação é uma questão de sobrevivência. É assim que nasce o adulto “people pleaser” - aquele que vive em função da aprovação externa, porque o silêncio ou a rejeição do outro lhe soam, ainda, como perigo.

Quando é que o sofrimento normal se transforma em doença?

Quando uma reação normal de stresse agudo, que deveria ser temporária, se torna crónica. Ou seja, quando o organismo deixa de conseguir regressar ao seu estado natural de equilíbrio e cria um novo “ponto de estabilidade” precário. Em termos fisiológicos, é quando o sistema nervoso permanece em alerta constante, como se o perigo nunca terminasse. O corpo adapta-se a esse estado, mas a um preço elevado: desgaste físico, exaustão emocional, alterações do sono, ansiedade persistente. O que começou como uma resposta de proteção passa então a ser fonte de sofrimento.

Temos altos níveis de consumo de antidepressivos em Portugal, porquê?

É uma questão frequentemente debatida. Antes de mais, o próprio termo “antidepressivo” é enganador: estes fármacos não atuam apenas na depressão. São moduladores de neurotransmissores como a serotonina, a noradrenalina e a dopamina, e são utilizados numa vasta gama de condições — desde perturbações depressivas e ansiosas, até quadros obsessivo-compulsivos, alterações de comportamento ou perturbações do sono, entre outras. É natural, portanto, que a sua utilização seja elevada. Ainda assim, é importante reconhecer que a medicina - e a psiquiatria em particular - mantêm, por vezes, uma visão excessivamente fármaco-cêntrica do sofrimento humano. Medicamos emoções que, muitas vezes, são reações legítimas à vida: tristeza, perda, medo, vazio. E, ao fazê-lo, corremos o risco de transformar em patologia aquilo que é, em parte, expressão da condição humana. O que devemos fazer para sofrer menos?

Porque decidiu ter um capítulo sobre o sofrimento no Ocidente?

Porque a forma como sofremos (e como compreendemos o sofrimento) é profundamente moldada pela cultura. No Ocidente, o sofrimento tende a ser interpretado como sinal de patologia, algo a ser eliminado, muitas vezes através do medicamento. Já no Oriente, prevalece uma visão mais existencial: o sofrimento é visto como parte inevitável da condição humana e, por isso mesmo, como oportunidade de transformação. Enquanto o pensamento ocidental procura suprimir a dor, o pensamento oriental convida a observá-la, a compreendê-la e, em última instância, a integrar o seu sentido. Esta diferença (entre curar e compreender) é, para mim, uma das grandes chaves para repensarmos a saúde mental contemporânea.

De que forma a religião influencia a forma como lidamos com o sofrimento?

A religião e, num sentido mais amplo, a espiritualidade, constitui um dos mais sólidos fatores de proteção da saúde mental. Ao oferecer um enquadramento de significado para a existência e para o sofrimento, permite ao indivíduo situar-se perante aquilo que lhe acontece. A fé - seja num Deus, num princípio transcendente ou simplesmente numa ordem maior - confere direção, pertença e sentido. É precisamente esta visão de “algo que ultrapassa o eu” que, muitas vezes, ajuda a atravessar a “tempestade”: quando a dor deixa de ser apenas dor e passa a ser também caminho.

A ansiedade é uma epidemia?

A ansiedade, em si mesma, não é uma doença e muito menos uma epidemia. O que podemos questionar é a forma como a interpretamos e reagimos a ela. Muitas vezes, vivemos as nossas experiências através de lentes catastróficas (os chamados “erros cognitivos”) que nos fazem acreditar que aquilo que sentimos é perigoso ou intolerável. Vivemos numa sociedade apressada: apressada em produzir, em obter e, sobretudo, em escapar ao sofrimento. Essa pressa, paradoxalmente, tem gerado ainda mais sofrimento. Não podemos falar de uma epidemia de ansiedade, mas podemos falar de uma cultura ansiosa - uma forma de viver que nos mantém permanentemente em alerta, afastando-nos da presença, da pausa e da segurança interior.

O livro de João Perestrelo explica a ciência do sofrimento
O livro de João Perestrelo explica a ciência do sofrimento

Como vê o número de depressões e ansiedade a crescer entre os jovens?

Os indicadores de perturbações do humor e de ansiedade não enganam: há cada vez mais jovens em sofrimento psicológico. Este aumento não é apenas um fenómeno clínico, mas sobretudo social. Vivemos num modelo de vida que se tornou patologicamente exigente - um sistema que idolatra o desempenho, a produtividade e a aparência de sucesso. Este ideal quase ditatorial de perfeição cria uma geração que se sente constantemente em falta, exausta e culpada por não corresponder. O mais paradoxal é que esta cultura, que promete realização, acaba por gerar precisamente o oposto: vazio, burnout, depressão e ansiedade.

O que podem os pais fazer?

Estar presentes - verdadeiramente presentes. Escutar antes de corrigir, dialogar antes de julgar. Ensinar os filhos a reconhecer e comunicar as suas emoções e a pedir ajuda quando não conseguem lidar sozinhos. A presença e a comunicação emocional são os maiores fatores protetores num lar saudável. Um ambiente onde o afeto é acompanhado por escuta e disponibilidade emocional permite que a criança e o jovem cresçam com segurança interna - a base mais sólida para a saúde mental.

Que conselhos diria às pessoas para conseguirem lidar com o sofrimento?

Não existem modelos a copiar. Cada pessoa sofre à sua maneira. A visão mecanicista - a ideia de que há uma fórmula universal para lidar com a dor - só reforça o sofrimento: “isto funcionou com o outro, mas não comigo… devo estar a falhar.” O sofrimento não é um erro a corrigir, mas um processo a atravessar. Talvez o pensamento mais importante a reter seja que todo o sofrimento tem um início, um meio e um fim. Nada permanece inalterado - e essa impermanência é, em si mesma, uma forma de esperança.

Pode explicar o que é a compaixão ativa?

É a capacidade de responder ao sofrimento - do outro ou do próprio (autocompaixão) - com uma atitude de presença e ação consciente. Não é um sentimento passivo de pena, mas uma prática cultivada. Kristin Neff, uma das principais investigadoras neste campo, descreve três pilares fundamentais: mindfulness, que nos permite reconhecer o sofrimento tal como é; humanidade comum, que nos recorda que a dor é uma experiência universal; e bondade própria, que implica tratarmo-nos com o mesmo cuidado e respeito que ofereceríamos a alguém que amamos.

E de que forma as redes sociais e os influencers e a vida perfeita do Tik Tok nos pode estar a prejudicar e a comprometer a saúde mental?

Não existem influencers no sentido saudável do termo. É um conceito profundamente tóxico. Quem verdadeiramente influencia é quem vive de acordo com os seus valores, quem constrói uma vida com autenticidade, compaixão e autocompaixão - e isso não se mostra, não existe para ser mostrado! Sente-se. As redes sociais promovem uma desconexão progressiva com o sentimento e com a essência humana. Mergulhados num scroll infinito, buscamos preencher um vazio que não tem nome, mas que todos reconhecemos. O perigo é real: nunca ninguém se suicidou no passado por ler uma notícia banal num jornal, mas hoje, muitos jovens sucumbem porque não conseguem corresponder aos modelos irreais que lhes são impostos. Estamos a vender ilusões de perfeição a um preço altíssimo - o da própria vida. Mas há um caminho de regresso. Começaremos a curar enquanto sociedade quando começarmos a sentir, a desligar e a reconectar connosco e com os outros. Quando recordamos que o que é verdadeiramente belo não é o que se mostra, mas o que se vive em silêncio, com presença e autenticidade.

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