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Renato Gomes Carvalho
Renato Gomes Carvalho Membro da direção da Ordem dos Psicólogos Portugueses
25 de novembro de 2025 às 11:30

A saúde mental não começa no consultório

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Como país, enquanto não formos eficientes e articulados nesta missão, por muito que se reforcem condições de tratamento continuaremos a lamentar-nos pela “elevada prevalência de perturbações psicológicas no nosso país”. 

A generalidade das pessoas com interesse pelo tema da saúde mental tem a noção de que não corresponde apenas a um estado de ausência de doença, mas envolve bem-estar, produtividade e capacidade de resposta aos desafios que surgem ao longo da vida. Esta perspetiva é frequentemente veiculada em documentos e mensagens oficiais das instituições de referência nos planos nacional e internacional. Se isso depois se traduz nas medidas que são tomadas e na ação concreta, é outra coisa…?

Se há uma assunção partilhada sobre o que é e o que não é saúde mental, também sabemos que as implicações dessa definição vão muito além de uma dimensão conceptual e remetem para qual é o foco de planos e estratégias públicas, particularmente quando se considera o contínuo prevenção-tratamento-reabilitação.

Evidentemente, é necessário garantir respostas adequadas às pessoas que vivem ou estão com alguma perturbação - essa prevalência é muito elevada na população e no nosso país há ainda muito que fazer, por exemplo, considerando a escassez de profissionais, a sua distribuição no território e certos modelos de organização de serviços. Há problemas de acesso às intervenções e de capacidade de resposta às muitas necessidades existentes, para além de outras questões relacionadas com as condições para que as capacidades existentes sejam potencializadas. Ou seja, para além de ser necessário reforçar os serviços com mais profissionais, é também necessário dar-lhes as condições para que seja assegurada a qualidade das intervenções.?

Mas também não esqueçamos o que acontece antes das pessoas apresentarem sinais e sintomas, particularmente quais são os determinantes psicossociais da sua saúde. Esta não é uma ideia nova - já nos anos 70, o célebre relatório Lalonde mostrava que os indicadores de saúde dos canadianos eram determinados por questões que iam muito além da genética e da intervenção direta do sistema de saúde.?

Isto faz-nos recordar duas importantes ideias que estão muito interligadas. Desde logo, a importância de uma efetiva valorização da prevenção e da promoção. Se, antes das pessoas chegarem a um consultório com sinais e sintomas, muito já se determinou sobre a sua saúde, então não podemos negligenciar a necessidade de se prevenir o surgimento dos problemas e promover as competências que lhes permitam lidar com os desafios que enfrentam nas suas vidas. O que nos leva à segunda ideia, que é onde é que se faz isso, isto é a necessidade de uma ação nos contextos onde as pessoas estão, trabalham e vivem.?

Se os determinantes da saúde mental remetem para dimensões que nem sequer são tuteladas pela área da saúde, como é a educação, o trabalho, a fiscalidade, a habitação, o ambiente, a comunidade, entre outros, então qualquer ação ou plano estratégico que pretenda ser eficaz em saúde mental deve prever, valorizar e integrar intervenções nestes vários contextos de vida das pessoas. E deve fazê-lo, não transpondo simplesmente modelos centrados na doença para contextos de normalidade, mas numa perspetiva de saúde - tal como preconiza a definição com que iniciámos esta reflexão.?

Também estamos a abordar a saúde mental quando falamos de condições de apoio ao desenvolvimento na infância, particularmente no caso de famílias em situação de vulnerabilidade social, de promoção de competências sociais, de prevenção do bullying e outros problemas nas escolas, de intervenção sobre os riscos psicossociais nos locais de trabalho, de criação de condições para tempos livres e lazer com qualidade, de proteção do ambiente e preservação do espaço público e de cidades mais amigas das pessoas, de eficácia no combate à pobreza. E isso tem de ser considerado em planos e estratégias neste âmbito, através de uma abordagem de saúde mental e bem estar em todas as políticas, que pressuponha ações coordenadas em vários níveis e setores.?

Esta abordagem não é apenas um exercício teórico, uma recomendação genérica dos relatórios neste domínio ou a habitual conclusão de mesas de conferências. É uma necessidade fulcral para que tenhamos mais desenvolvimento humano, sustentabilidade e competitividade nas sociedades. Como país, enquanto não formos eficientes e articulados nesta missão, por muito que se reforcem condições de tratamento - o que é essencial, tendo em conta os problemas de acesso que existem - continuaremos a lamentar-nos pela “elevada prevalência de perturbações psicológicas no nosso país”.?

Seria bom que a comunidade alargada e as políticas públicas em saúde mental tivessem isto mais presente, traduzindo-se em investimento e concretizando a conhecida expressão Put your money where you mouth is.

A isto voltaremos numa próxima ocasião.

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