Sherine Tadros: "Há muito que pode ser feito para pressionar Israel"
A representante da Amnistia Internacional na ONU falou com a SÁBADO antes da conferência sobre a solução dos dois estados. A organização insta os líderes mundiais a tomarem medidas para pressionarem Israel a acabar com a "fome em massa, apartheid e genocídio".
Os líderes mundiais vão reunir-se durante dois dias em Nova Iorque para uma conferência internacional da ONU com o tema "A Solução Pacífica da Questão da Palestina e a Implementação da Solução de Dois Estados", coorganizada pela Arábia Saudita e pela França. Esta conferência, que ocorre numa altura em que as preocupações sobre a catástrofe humanitária em Gaza aumentam, estava programada para junho, mas teve de ser adiada depois deIsrael iniciar os ataques contra o Irão.
Os Estados Unidos, através do porta-voz do Departamento de Estado, já referiram que não vão estar presentes. Ainda assim Sherine Tadros, representante da Amnistia Internacional na ONU, acredita que este é um momento histórico e que é essencial que os membros das Nações Unidas pressionem Israel a cumprir o direito internacional.
O que podemos esperar desta conferência?
Acho que provavelmente há duas maneiras diferente de responder a isso. Por um lado, o que é que podemos esperar tendo em conta a forma como estas conferências decorreram no passado e por outro o que se pode realmente fazer? Infelizmente as duas questões têm respostas diferentes.
O que pode ser feito é muito. Esta é uma oportunidade histórica, uma vez que os ministros se reúnem justamente sobre este assunto num momento em que Gaza está a passar fome em massa, existe apartheid nos territórios ocupados, estamos a assistir a um crime de genocídio e os responsáveis políticos vão estar todos reunidos para falar sobre a situação.
Há muito que pode ser feito para pressionar Israel a pôr termo a estas violações e a estas práticas. A Amnistia tem um documento de orientação com recomendações, assim como outras ONG e grupos, por isso não faltam ideias sobre como os outros estados, além de Israel, podem pôr fim a esta situação, exercer pressão suficiente sobre o Estado de Israel para pôr fim a estas práticas.
O problema é a vontade política e o facto de a verdadeira pressão que pode ser exercida vem das pessoas comuns. Em cada país deve ser exigido que esta não se torne apenas mais uma conferência em que os líderes se sentam e falam, mas que nada é efetivamente feito ou alterado.
Para a Amnistia o que seria uma conferência bem-sucedida?
Acho que deveria ser incontroverso chamar a atenção para o facto de se tratar de um genocídio. Isso não deveria ser algo tão rebuscado para qualquer líder. É o que está a acontecer. A fome forçada, a que também estamos a assistir, é algo que está a acontecer nos nossos ecrãs e toda a gente pode ver. Se isto acontecesse em praticamente qualquer outro país, já teria sido denunciado por todo o mundo.
Portanto, a primeira coisa é o reconhecimento do que está a acontecer e a sua denúncia. Esta é, em última análise, uma conferência sobre a criação de dois Estados, a solução dos dois Estados. Como é possível ignorar o facto de um destes Estados estar a cometer um genocídio neste momento contra o outro?
Uma das coisas que alimentam o conflito e garantem que não possa haver um Estado palestiniano são os colonatos israelitas ilegais, que têm invadido cada vez mais as terras palestinianas, tornando absurda toda a ideia de um Estado palestiniano. É como se as estivéssemos a dizer que vamos dividir uma piza de forma justa, e uma das pessoas já está a comê-la enquanto discutem o assunto. Não faz sentido.
Mas os países terceiros podem, sem dúvida, desempenhar um papel neste domínio, porque hoje ainda há muitas trocas comerciais a acontecerem, até países que consideramos que têm empatia para com a causa palestiniana estão a falhar na regulamentação contra o comércio com os colonatos. Como podem os Estados continuar a permitir o comércio com os colonatos ilegais, que são essencialmente o combustível económico por detrás do desaparecimento de um Estado palestiniano?
Falamos da solução dos dois Estados, mas ainda há muitos países que não reconhecem a Palestina. Na semana passada, Macron afirmou que França está disposta a reconhecê-la, é importante que mais países reconheçam o Estado da Palestina?
Sim apesar de, como organização de direitos humanos, não nos preocupamos com a questão do Estado e com o reconhecimento do Estado.
O que esperamos é que os líderes façam essas escolhas quentes. Há uma série de questões políticas diferentes sobre as quais estão a vacilar, estiveram muito perto, mas não chegaram lá, ainda antes do início do genocídio. O que esperamos é que este seja o momento. Não há outro momento, de que mais estão à espera? Temos genocídio, apartheid e fome, de que mais estão à espera? Se perderem esta oportunidade, a História não os verá com bons olhos, recordaremos para sempre este momento como aquele em que se viu um homem morrer à fome enquanto esperava por comida numa fila de ajuda humanitária.
Todos nos lembraremos das imagens das crianças que estão a ser mortas em massa. Estes factos assombrar-nos-ão para sempre e deveriam assombrar os líderes mundiais para sempre. Esta é uma oportunidade para nos unirmos e atuarmos em conjunto.
Já mencionou várias vezes apartheid e genocídio. Parece que os líderes mundiais estão a fugir destes termos, falam da fome extrema em Gaza, mas não lhe chamam genocídio nem apartheid. É importante que passem a ser usados?
Sem dúvida. Não sei porque é que é sequer controverso que essas coisas estejam a acontecer, até porque não foi nos últimos meses, nem sequer um ano que começou, já se vão alguns anos e no caso do apartheid, décadas.
Acho difícil argumentar que algumas destas coisas não está a acontecer, o que está em causa é saber se é politicamente conveniente usar esses termos.
Não sei o que é que estão à espera que aconteça para o poderem dizer. Todos os Estados têm a obrigação de agir mesmo que não determinem que o que se está a passar é um genocídio, porque há indícios suficientes para mostrar que pode haver um genocídio, que há suspeitos de um genocídio. Tendo em que conta o Tribunal Internacional de Justiça, e todas as organizações que trabalham seriamente nesta questão, a apelidaram de genocídio é difícil argumentar que não há suspeitas de genocídio.
No briefing da Amnistia referem muitas resoluções publicadas pela ONU, mas que não tiveram qualquer consequência real, nem acompanhamento. Por vezes parece que uma decisão tomada na ONU não significa nada?
Isso é algo que tem sido muito dececionante para nós, que trabalhamos nas Nações Unidas. Ao constatarmos que há resoluções como a que foi aprovada em junho, em que mais de 140 países votam a favor e, no entanto, Israel não está a cumprir. É preciso agir, como aconteceu com a Rússia pelos compromissos internacionais.
Estamos a chegar ao aniversário, no dia 18 de setembro, da resolução que apelou a Israel para que pusesse fim à sua ocupação, este é um dia marcante em que todos deveriam exigir que se fizesse alguma coisa por este incumprimento, isto não pode acontecer. O mundo inteiro, com exceção de alguns países que não estavam presentes, se abstiveram ou que são aliados de Israel, disse que isto está errado, que tem de acabar, e, no entanto, Israel não para.
Israel continua e intensificar as suas operações. É preciso fazer alguma coisa, ou então todo o sistema fica realmente ridicularizado.
O que pode ser feito?
A cooperação deve ser interrompida. Refiro-me à cooperação diplomática e à cooperação económica, os Estados devem usar todos estes instrumentos que estão à sua disposição.
Como é que a sociedade civil pode pressionar os governos a fazer alguma coisa?
Penso que algumas das declarações mais poderosas foram proferidas pelos líderes depois de termos assistido a uma revolta em massa das pessoas, que saíram à rua, escreveram aos seus líderes, fizeram com que as eleições, quase como as que tiveram lugar nos EUA, ficassem dependentes das políticas e das palavras que são utilizadas para descrever Gaza.
E penso que esse tipo de pressão da população sobre os líderes não é inconsequente, e é um poder enorme quando exercido em massa.
Se cada pessoa decidir que esta é uma questão pela qual vai sair à rua, que é uma questão sobre a qual vai publicar todos os dias, esta é uma questão sobre a qual vai escrever aos seus líderes, vai ditar a forma como vota, estaríamos num lugar muito diferente neste momento.
O projeto político dos dirigentes tem de mudar e esse é um processo que já está a decorrer, a sociedade civil tem-se feito ouvir, com muitas manifestações e vigílias a levarem as pessoas às ruas, mas precisamos de mais, porque este é um momento como o que se viveu durante a guerra do Iraque ou outros momentos cruciais da História. Às vezes parece que estamos a falar de algo que está a acontecer muito longe, como se o que está a acontecer em Gaza não nos afetasse aqui, ao contrário de outras guerras que fizeram com que opreço do petróleo aumentasse, outros países envolveram-se militarmente e, por isso, os seus filhos e filhas ficaram em risco. Este é um tipo diferente de conflito. É muito mais estrangeiro. Muitas pessoas nem sequer sabem onde é que Gaza é e mesmo que saibam nunca estiveram lá nem conhecem nenhum palestiniano, quanto mais alguém de Gaza.
A História julgar-nos-á por termos ficados de braços cruzados e não termos agido neste momento em que assistimos a esta completa proteção da tortura coletiva de uma população.
Para que seja alcançada uma verdadeira solução de dois Estados, o cessar-fogo é apenas o começo?
Há certas coisas que têm de acontecer antes mesmo de se falar numa solução de dois Estados e acho que os organizadores desta conferência sabem disso.
Mas o facto é que na ONU é uma forma de se começar a falar de Israel-Palestina, porque é algo com que quase todos podem concordar e esperamos que isto seja apenas usado como uma forma de reunir todos num ponto de partida. Porque claro que, neste momento, é absurdo falar de uma solução de dois Estados com o que se está a passar no terreno.
E qual pode ser o papel de António Guterres, secretário-geral da ONU, neste momento?
Tem tido um papel muito forte, desde muito cedo alertou para a catástrofe iminente e com muita frequência fala sobre a situação nas suas redes sociais.
A ONU em geral elaborou relatórios e não se calou sobre este assunto. Mas também deve fazer mais sobre o não cumprimento das suas resoluções. Por vezes pergunto-me se a política não terá de ser posta de lado para que todos atuem da forma mais firme possível. Consigo pensar em atores que foram além do que normalmente fazem, mas ainda não utilizaram todas as ferramentas, o secretário-geral está sem dúvida incluído nessa lista.
Tem de haver mais pressão para que António Guterres consiga que todos os Estados tornem as recomendações em realidade. Por isso, penso que deveria analisar internamente o que pode fazer quando um país está constantemente a desrespeitar as resoluções da ONU. E esta pressão tem de ser feita não só a Israel, mas, neste momento, sobretudo sobre os outros membros da ONU.
Penso que esta conferência não tem a ver com a forma como pressionamos Israel, o que está em causa é a forma como pressionamos os Estados que podem exercer pressão sobre Israel.
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