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Mundial na Arábia Saudita: outra derrota dos direitos humanos?

Carlos Torres 12 de dezembro de 2024 às 18:22

Já começaram as críticas ao Mundial na Arábia Saudita, em especial relacionadas com as violações dos direitos humanos e com as más condições que muitos trabalhadores migrantes vão enfrentar. Para lá disso, também vai reinar a hipocrisia e a indiferença: os adeptos não vão deixar de ir aos estádios, tal como aconteceu no Qatar; e os vencedores de 2034 vão festejar na rua com o povo, tal como os milhões de argentinos que receberam a seleção em Buenos Aires, em 2022.

Ainda faltam 10 anos, mas o rol de críticas, que surgiu ainda antes de a FIFA anunciar (na quarta-feira, 11 de dezembro) a Arábia Saudita como país anfitrião do Mundial de Futebol de 2034, já começou e promete intensificar-se. Este é um processo semelhante ao que aconteceu num dos vizinhos, o Qatar, país-sede do Mundial 2022, que também foi muito criticado devido às violações dos direitos humanos e às más condições dos migrantes que participaram na construção das infraestruturas da prova.

Saudi Arabia Football Association/Handout via REUTERS

No início de dezembro, a Human Rights Watch pediu à FIFA que rejeitasse a candidatura saudita porque o governo não se comprometeu a proteger os trabalhadores migrantes que deverão ser contratados para construir os estádios e todas as outras infraestruturas necessárias para albergar o Mundial 2034. A organização referiu que "quase de certeza" se vão registar "violações generalizadas de direitos". Recorde-se que, no Qatar, e segundo os números mais baixos apontados por várias organizações, pelo menos 400 a 500 trabalhadores migrantes morreram durante as obras relacionadas com o Mundial de 2022.

A Amnistia Internacional também considerou "insensata" a decisão da FIFA em entregar a organização do Mundial 2034 à Arábia Saudita, pois vai "colocar vidas em risco". "Trata-se de um momento de grande perigo para os direitos humanos", avançou o porta-voz da Amnistia, Miguel Araújo, adiantando que a decisão da FIFA se baseia em "poucas ou nenhumas garantias de proteção adequada dos direitos humanos".

Nos nos últimos três anos (2021 a 2023) a Arábia Saudita gastou mais de 5,7 mil milhões de euros em negócios desportivos e na organização de grandes eventos, segundo avança o jornal The Guardian - eventos que vão do ténis ao golfe, ao boxe e à Fórmula 1. Mas a maior visibilidade desse investimento tem sido no futebol, com o país a investir milhões na contratação de jogadores-estrelas, como Cristiano Ronaldo, Neymar ou Benzema, pagos principescamente para jogarem no campeonato saudita. Um processo que é apelidado de sportswashing (usar o desporto para lavar a má imagem do país noutras áreas).

Uma filosofia que tem por trás Mohammed bin Salman, o príncipe herdeiro e atual primeiro-ministro da Arábia Saudita. Na semana passada, em entrevista ao site brasileiro Globo Esporte, Tanguy Baghdadi, professor de política internacional, falava sobre isso. "O príncipe tem essa visão de que a Arábia Saudita tem de mudar o seu posicionamento, que o país tem de ser mais sedutor, afastar a imagem de país sisudo".

Ainda segundo Tanguy Baghdadi, a comunidade internacional tem uma visão dúbia sobre a Arábia Saudita. "É visto como um país violador, e que tem uma posição complicada - para dizer o mínimo - em relação aos direitos humanos. Mas, por outro lado, há uma maior condescendência com a Arábia Saudita do que se imaginaria razoável, até porque é um importante aliado dos EUA na região. Isso contribui para que o país possa ser visto como um problema, mas que talvez seja melhor estar ao seu lado do que contra".

Ainda assim, não tem dúvidas em denunciar os muitos pecados do país. "Há repressão, tortura, pena de morte, não há democracia, não há igualdade de direitos entre homens e mulheres. A Arábia Saudita é o violador perfeito de direitos humanos".

A Arábia Saudita já avançou que o Mundial 2034 irá ser jogado em 15 estádios, de cinco cidades do país (Neom, Jidá, Riade, Abha e Al Khobar). Aliás, alguns estádios deverão ficar em Neom, uma cidade que vai ser construída de raiz e apenas ficará concluída em 2045 - Neom terá o tamanho da Bélgica, com 170 km de extensão e quatro áreas diferentes (Sindalah, Trojena, Oxagon e Line). Irá albergar 9 milhões de habitantes, mas não terá estradas nem carros, prevendo-se o uso de 100% de energia renovável. Só para construir Neom, vão ser gastos mais de 1 trilião de dólares.

Um megaprojeto que, segundo especialistas em direitos humanos, nomeados para acompanhar o caso pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, poderá fazer já as primeiras três vítimas. São três membros da tribo saudita Huwaitat, que se opuseram à construção de Neom (terão sido alvo de despejos forçados) e terão sido condenado à morte em agosto de 2023 por terrorismo. Isso ainda não aconteceu - "estão em risco iminente de execução" - devido aos sucessivos apelos da sentença, que se têm verificado desde janeiro deste ano. Há outros três membros da mesma tribo que, segundo avançou o jornal The Guardian, já foram condenados a penas que variam entre 27 e 50 anos de prisão.

Outra crítica relacionada com o Mundial 2034 prende-se com a forma como todo o processo decorreu. A Arábia Saudita até tinha planeado avançar com o Mundial em 2030, mas devido à forte concorrência da candidatura de Espanha, Portugal e Marrocos, e ainda pelo facto de o Mundial de 2024 ter sido no Qatar (um país da região), ficou decidido que seria melhor haver um maior espaçamento.

Em outubro de 2023, tudo ficou mais claro quando a Austrália, o outro país interessado em candidatar-se ao Mundial 2034, decidiu não avançar, considerando que a sua candidatura não seria suficientemente forte. A questão é que a FIFA terá decidido abrir o processo sem aviso prévio, dando aos países candidatos apenas 25 dias para se prepararem, numa altura em que a Arábia Saudita, segundo o The Guardian, "já tinha um documento brilhante pronto a ser apresentado".

"A Europa tem de perceber que o mundo faz o que quer. Na política como no futebol", escreveu o antigo futebolista Philipp Lahm no jornal alemão Zeit Online. Sobre a atribuição do Mundial à Arábia Saudita, diz que "a Europa debate agora como lidar com trabalhadores estrangeiros, direitos humanos e democracia". No entanto, continua, "o resto do mundo não se preocupa com as objeções europeias".

Na Arábia Saudita – e com exceção de alguns relatórios das organizações dos direitos humanos, como Human Rights Watch ou Amnistia Internacional, a darem conta das más condições dos trabalhadores e dos abusos de que são alvo –, a construção dos estádios e demais infraestruturas vai acontecer, os adeptos de todas as seleções participantes vão deslocar-se ao país para assistirem aos jogos e a prova será declarada um sucesso. Tal e qual como aconteceu no Qatar.

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