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João Garcia e a escalada ao K2, “a montanha mais perigosa do mundo”
O homem que se despenhou de mais de 3.000 metros de altura, os perigos das avalanches e tempestades, o bacalhau, a aspirina ou a praga dos “turistas-alpinistas". João Garcia contou, em livro, as suas aventuras na subida até aos 8.611 metros do K2.
Deve ter sido um momento terrível, o que João Garcia presenciou, a mais de 8.000 metros de altitude, na chamada “Zona da Morte” do K2, naquela que é considerada “a montanha mais perigosa do mundo” (estende-se entre o Paquistão e a China).
João Garcia no K2, montanha entre Paquistão e China, relata perigos e desafios da escalada
O primeiro português e 10º no mundo
João Garcia, de 58 anos, foi o primeiro português a chegar ao topo do Evereste e tornou-se o 10º alpinista do mundo a escalar as 14 montanhas com mais de 8.000 metros (todas sem recurso a oxigénio e carregadores de altitude), feito conseguido em 17 de abril de 2010, quando atingiu o cume do Annapurna (8.091 metros). Como dá conta Aurélio Faria, João Garcia tem a alcunha de Tshinring dai, que significa “Aquele que vive muito tempo” – “foi esse o nome sherpa pelo qual se tornou conhecido entre os amigos nepaleses, após a conquista sofrida do Evereste, em 1999”. Logo no prólogo deste livro (que vai ser posto à venda a 23 de outubro), João Garcia avisa: “Desde que ando pelos Himalaias, sempre ouvi que quem escala o Evereste ganha fama mundial, mas só é um alpinista verdadeiro quem alcança o cume do K2. A pirâmide de rocha e gelo, situada na cordilheira do Karacorum, é considerada a montanha mais perigosa e tecnicamente exigente entre as 14 montanhas de 8.000 metros de altitude”. É isso mesmo que apontam as estatísticas, pois além do “elevado número de fatalidades”, a taxa de sucesso “raramente ultrapassa os 30%”. “A 20 de julho de 2007, quando pisei o cume do K2, senti uma alegria que julgava perdida e recuperei uma tranquilidade única, que só sinto na alta montanha. Regressei exausto a Portugal. Mas reconciliado comigo próprio e com a certeza de ter superado novos limites pessoais. Os anos que se seguiram ao K2 foram intensos. A finalização do projeto dos 8 mil, novas aventuras nos Himalaias e o regresso ao trabalho de guia de montanha atrasaram (por muitos anos) o projeto deste livro. À distância de quase duas décadas, julgo que é o momento certo para contar o que nunca foi contado sobre esta expedição inesquecível, a uma das regiões mais bonitas e mais perigosas da Terra”. A subida final ao cume do K2, a segunda montanha mais alta do mundo (tem 8.611 metros de altitude, só abaixo dos 8.848 do Evereste) é marcante e está logo na parte inicial do livro. Devido às condições atmosféricas, o grupo de alpinistas teria cerca de 17 horas para chegar lá acima desde o campo 4 (a 7.863 metros de altitude, onde João tinha a tenda com o saco-cama e o fogão) e voltar. Eram “quase 750 metros de neve, gelo e rocha, por uma via de escalada íngreme e traiçoeira, com mais de 50 graus de inclinação”. Essa última etapa começou de madrugada: “Acendemos o fogão para descongelar bocados de gelo, e termos líquidos durante a subida e bebidas quentes para um pequeno-almoço à hora da ceia. Bebi o máximo de água e chá preto que pude e tentei contrariar a falta de apetite de que sofro em altitude. Estava acordado, mas os olhos ainda pareciam adormecidos”, começa por contar João Garcia. E mais à frente: “Além do essencial para um dia de sobrevivência em altitude extrema, pouco carregava na mochila. Na alta altitude, não há sandes nem lanchinhos. Para comer na ida e volta ao cume, guardei no lado esquerdo do fato pequenos pedaços de barras energéticas já desembalados, pois assim são mais fáceis de colocar na boca. Guardava a recordação de tentar morder uma barra congelada que quase me partiu os dentes”. A 8.000 metros de altitude só há 30% do oxigénio respirado ao nível do mar e João Garcia vinca essas dificuldades, contando com detalhe fotográfico os momentos da escalada, o que nos deixa a sensação de que o estamos a acompanhar: “Escutava o baque surdo das botas a progredir no gelo”; “Arfava como um cavalo e a minha respiração ofegante arranhava-me a garganta”; “Era como se corresse os 100 metros a passe de tartaruga ou andasse ao ritmo de uma velhinha a atravessar a rua”. Numa altura em que já “sentia os pulmões pesados e o coração a martelar no peito”, conseguiu fazer a parte final da escalada. “Os últimos 34 metros da ascensão foram momentos que recordarei para sempre; após quatro dias de subida, surgia a alegria única dos últimos metros. Pisei o cume já fora do limite do horário de segurança. Eram quatro e dez da tarde do dia 20 de julho de 2007 quando alcancei os 8.611 metros do K2. Soprava uma brisa suave que levantava cristais de gelo”."O cume era apenas um ponto de viragem"
Esteve no cume 20 minutos, para fazer um vídeo (onde agradeceu ao patrocinador e expressou o seu contentamento por ser o primeiro português a alcançar o topo do K2), tirar fotos com a bandeira portuguesa, fazer uma comunicação de rádio com o campo 4 e com o campo-base e, ainda, ligando o telefone-satélite, dizer à mulher, Inês (em Lisboa) que estava no topo da montanha. E, claro, João Garcia pôde também observar a incrível paisagem que o rodeava, com centenas de cumes de 6.000 e 7.000 metros, com “os extensos glaciares de Baltoro e de Godwin-Austen, e os outros glaciares menores que convergem em Concórdia”. Depois desse momento de euforia, faltava “a outra metade da maratona”, que era a descida. “O fluxo de adrenalina dos derradeiros metros de ascensão foi rapidamente anulado pelas preocupações com o regresso. Estava preocupado por duas razões: a primeira era a hora tardia a que alcancei o cume; a segunda, o facto de estarem a terminar as horas de calmaria [das condições atmosféricas]. Apressei-me a descer. Depois de beber o que restava de chá e de mastigar à pressa uns pedaços de barras energéticas. Esta era a minha vida de alpinista: chegar ao cume e dar meia-volta. O cume era apenas um ponto de viragem. Nunca celebrei a metade do caminho; a minha meta sempre foi regressar são e salvo à segurança do acampamento-base”. E iria chegar bem ao campo 4 já às 8h da noite, podendo abrigar-se do vento forte no conforto da tenda, que parecia "prestes a voar pelos ares" - "mesmo para um alpinista com a minha experiência, é impossível não ter medo". No livro, João Garcia fala de vários aspetos, desde logo as questões da preparação, que implicam ter as devidas licenças de escalada, conseguidas em Islamabad, a capital paquistanesa. E das quantias de dinheiro envolvidas numa empreitada destas. “Além do pagamento de 1.500 dólares ao oficial de ligação, uma equipa de sete alpinistas paga o equivalente a 9.600 euros para chegar ao sopé do K2. Daí para cima, a responsabilidade é de cada um. Acresce ainda uma taxa ambiental, reembolsável, de 160 euros, pela reciclagem e queima dos lixos da expedição. Com comida e carregadores, soma-se ainda, à conta individual, outros 6.400 euros”. Entre os muitos aspetos da expedição, ficamos a saber das dificuldades em chegar perto do K2. Afinal, há uma primeira viagem, de dois dias e 23 horas, num minibus entre Islamabad e Sardu. Segue-se nova etapa, agora de jipe, até Askole, a última povoação antes do K2, e que fica a 3.000 metros de altitude. “A travessia dos rios é outra das partes mais perigosas deste percurso. Por várias vezes, tivemos de sair e seguir a pé, atrás do jipe. O motorista fazia, sozinho, as manobras arriscadas, numa travessia muito lenta, de pontes precárias, assentes sobre toros de madeira a ranger e a estalar sob o peso do carro. Assim, se os tirantes das pontes se partissem, haveria apenas uma vítima, numa eventual queda para o rio, de águas bravas e frias, derretidas dos glaciares das montanhas”, descreveu João Garcia. Depois de Askole, é preciso caminhar durante uma semana até ao acampamento-base da montanha. “Não havia iaques nem animais de carga, como no Nepal. (…) No patamar dos 3.000 metros, sofremos o primeiro grande susto: a queda de um pedregulho abriu uma cratera no local onde, minutos antes, Karim descansava e comia”.Bacalhau na escalada
João Garcia dá-nos conta de muitas outras questões, nomeadamente as que estão relacionadas com a alimentação (um aspeto fundamental na alta montanha), ou da receita inventada de “bacalhau himalaiano” – é verdade, decidiu levar dois ou 3 quilos de bacalhau consigo. O alpinista português recorda ainda as sessões de cinema que organizou na tenda-messe (iluminadas por lâmpadas alimentadas por energia solar), salienta o filtro cerâmico que usava para extrair e filtrar a água dos riachos e ribeiros (“já tinha tido a minha dose de vómitos, diarreia e febre nas primeiras andanças himalaianas”) e aponta também a importância de ter com ele um médico – afinal, como diz, “no K2, um pequeno problema de saúde, quase de certeza anteciparia o voo de regresso”. E ele, a conselho do médico, tomou diariamente uma aspirina, “um procedimento comum entre muitos alpinistas desde que se descobriu que podia prevenir a formação de coágulos sanguíneos, fatais em alta montanha”. João Garcia explica ainda o porquê do nome K2 (sem querer ser exaustivo, tem a ver com o nome da cordilheira do Karacorum e com a cartografia feita, em 1856, pelo britânico Thomas George Montgomerie) e deixa críticas aos “alpinistas-turistas”: “Perturba-me como alguém chega a um acampamento-base sem nunca ter montado uma tenda e ignorando os riscos e as dificuldades da ascensão”. Aqui fica, a certa altura, um desabafo de João Garcia em jeito de crítica e de alerta: “Há cada vez mais ‘não alpinistas’ que alimentam a ‘indústria do himalaismo comercial’ e enriquecem empresários de poucos escrúpulos. Em alguns casos, é um negócio montado por alpinistas frustrados; atraem clientes inconscientes dos riscos, à procura de um troféu pessoal obtido numa ‘caçada’ única aos picos que, para os povos locais, são as deusas mães do mundo. Organizam tudo por um preço exorbitante e só falta a pulseira de um resort com tudo incluído. Decidem por todos o dia em que se pode subir; um ou dois sherpas carregam os equipamentos dos clientes, encaminham os candidatos para a tenda já montada, onde está uma garrafa de oxigénio para a noite; há um rádio para dois e outro(s) sherpa(s) com mais garrafas, que escoltam, e quase levam ao colo, os compradores desta experiência extrema, até ao cume. Houve uma pivô de televisão que nunca praticou montanhismo e que já o fez”.Artigos Relacionados
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