O que é a cultura incel retratada em Adolescência, da Netflix?
O sucesso da minissérie renovou a atenção sobre uma ideologia responsável por ataques terroristas, mortes e ascensão de uma nova estirpe de machismo e misoginia. Sabe quem são os incels?
Nos meses que antecederam o atentado de 23 de março de 2014, um homicídio em série que vitimou seis pessoas em Isla Vista, Califórnia, o perpetrador, o jovem Elliott Rodger, de 22 anos, visitava fóruns na internet em que se descrevia como "incel" e advogava uma "revolução" contra o "sistema feminista opressivo".
O seu suicídio na sequência dos ataques tornou-o num ícone para esta subcultura da internet, e, quatro anos depois, num tributo aos seus atos, Alek Minassian, de 25 anos, vitimou 11 outras pessoas num atropelamento em Toronto, no Canadá, tendo dito que estava a dar continuidade à "rebelião incel" iniciada por Rodger.
Independentemente do impacto que causaram na opinião pública, os atentados trouxeram notoriedade e popularidade acrescida a um movimento que havia crescido por mais de uma década nos recantos obscuros da internet, e que chegou ao mainstream através de vozes ligadas à nova extrema-direita (a chamada alt-right) e a uma estirpe moderna de machismo.
Como surgiu o termo incel?
Esta ideologia, para a qual surgiram ícones como Rodger, Minassian ou o influenciador Andrew Tate - ele próprio alvo de investigações judiciais de foro internacional por proxenetismo, tráfico humano, violação ou pedofilia - pode conduzir, nas situações mais severas, a casos como o dramatizado em Adolescência, sucesso viral da Netflix que voltou a trazer a atenção pública para esta corrente. Mas o que a caracteriza em particular, diferindo-a de outras motivações de ódio?
O termo "incel" - aglutinação de involuntary celibate, ou celibatário involuntário - teve a sua primeira expressão significativa em 1997, quando Alana, uma estudante canadiana queer, criou o Involuntary Celibacy Project, uma página da internet em que alunos de todas as idades, géneros e orientações sexuais podiam expressar as suas frustrações com o insucesso sexual. Seguiu-se-lhe uma newsletter, que abreviava o termo para "INVCEL" e era dirigida a qualquer pessoa que se sente solitária, nunca teve sexo ou não está num relacionamento há muito tempo".
Nos anos seguintes, o termo foi sendo abreviado para "incel", e ainda que o ano de 1999 tivesse assistido a um atentado de grande notoriedade ligado à ideologia - o massacre de Columbine, cujo perpetrador, Dylan Klebold, que sofria de tendências suicidas, se queixava de "infinita tristeza" pela incapacidade de se relacionar com mulheres -, o termo ainda não se popularizara o suficiente para entrar no vernáculo mainstream.
Como se tornou num grupo de homens?
Nos anos 2000, a comunidade incel, que, segundo Alana, fora criada como uma "comunidade inclusiva" para apoiar pessoas socialmente marginalizadas ou com problemas de saúde mental, transformou-se lenta e progressivamente num "grupo de homens a culpar as mulheres pelos seus problemas".
À medida que a sua adesão se foi homogeneizando em torno dos homens brancos e heterossexuais, em plataformas que se tornaram menos restritivas em relação a conteúdos misóginos e de apologia à violência, a comunidade tornou-se crescentemente influenciada por ideais de extrema-direita, propagados em fóruns como o 4chan e o Love-Shy e, principalmente, o Reddit, em fóruns como o r/incels e, mais tarde, o r/braincels.
O que defendem?
Em todos os fóruns, propagava-se e desenvolvia-se uma versão extrema do que começara como um grupo de apoio mútuo: o machismo, a autocomiseração pela virgindade, a misoginia, a objetificação de mulheres e cultura da violação estão no cerne da ideologia incel, que pode incluir ainda noções de determinismo biológico, niilismo, encorajamento de suicídio, racismo, antissemitismo, violência para com mulheres e pessoas sexualmente ativas e, em casos extremos, apologia de terrorismo e homicídios em massa, que dispararam nos Estados Unidos depois do atentado de Elliott Rodger, em 2014.
O discurso incel, esmagadoramente masculino, branco e heterossexual, foca-se na autovitimização pelo insucesso com as mulheres, defendendo que homens têm direito a ter sexo, culpando o feminismo pela incapacidade dos homens em encontrar parceiras sexuais, e glorificando uma "era dourada" dos relacionamentos, em que a monogamia estável garantia aos homens o sexo que mereciam - destruída, entretanto pelo movimento de emancipação feminina.
Entre os incels, o conceito de "black pill" - pílula negra, uma referência à célebre cena do filme Matrix, em que o protagonista deve escolher entre manter-se na ignorância e saber a verdade - refere-se ao sentimento fatalista e determinista de incels que se consideram pouco atraentes, e encaram as mulheres como pessoas cruéis e superficiais que só se interessam pelo aspeto físico dos homens. "Tomar a pílula negra" refere-se a aceitar a realidade da sua virgindade como imutável e sem esperança.
A "red pill", por outro lado - acompanhando o paralelo do Matrix, "ver o mundo como ele realmente é" - representa a ideia de aceitar a visão de que o feminismo deu demasiado poder às mulheres sobre os homens, e de que o privilégio da masculinidade é uma farsa. Em oposição à atitude derrotista da black pill, a ideologia da red pill prega que, ao reconhecer-se estas ideias, um incel pode melhorar as suas hipóteses com mulheres - uma ideia que aproxima a comunidade das menos marginalizadas correntes de "direitos dos homens", personificadas na figura de Andrew Tate.
Ainda que longe de normalizada - mesmo as pessoas associadas à ideologia de forma mais ténue são alvo de forte escrutínio -, a cultura incel permanece, ao que tudo indica, vibrante nos recantos menos vigiados da internet, e ainda mal estudada: a ligação entre estas ideias e a prevalência de problemas de saúde mental, tendências suicidas ou prática de violência permanece pouco compreendida - o que poderá explicar o fascínio com o tratamento de Adolescência do tema.
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