Sábado – Pense por si

A ciência de Severance: poderíamos dividir a nossa vida?

A série distópica de ficção científica que conquistou o mundo inaugura hoje a sua segunda temporada. Haverá uma base factual na sua premissa?

A estreia da segunda temporada deSeverance(Separação), título de êxito da AppleTV+ que fez furor aquando do seu lançamento, em 2022, promete revelar mais segredos sobre uma premissa simples, mas inegavelmente bem-sucedida: e se pudéssemos apagar todas as memórias do tempo que passamos a trabalhar, de modo a que, todos os dias, no momento em que saíssemos, a última memória que teríamos seria a de termos entrado?

Com atuações eloquentes, personagens empáticas e a experimentação com a mente humana a cargo da enigmática multinacional Lumon Industries, a série foi amplamente reconhecida pelo seu tratamento de questões laborais, incluindo a crítica da cultura corporativa, desumanização dos trabalhadores no capitalismo e o privilégio dos resultados e da produtividade sobre o bem-estar pessoal. 

No ramo da neurologia e da psicologia, no entanto, Severance parece dizer algo mais fundamental sobre a psique humana: na série, a perda de memória do tempo de trabalho do "eu" que vive no mundo de fora implica que, dentro do espaço laboral, exista outro "eu", com memórias, experiências e até personalidade diferentes. Esta ideia sugere que, dada a tecnologia adequada, poderíamos efetivamente separar a mente em dois. Mas seria isso possível, neurocientificamente falando?

O caso mais próximo será, porventura, o dos hemisférios separados: pacientes aos quais é removido um dos hemisférios cerebrais ou cujos hemisférios são separados para tratar doenças como a epilepsia - hemisferectomia anatómica ou funcional, respetivamente. No primeiro caso, verifica-se que, apesar de consideráveis limitações, os pacientes permanecem funcionais, com um dos hemisférios a dar conta da carga mental.

Já no segundo, há relatos de casos, ainda que com alguma raridade, em que os dois hemisférios parecem apresentar vontades e comportamentos distintos, e por vezes mesmo contraditórios: o exemplo da "alien hand syndrome" (síndrome da mão alienígena), em que uma das mãos parece ganhar vontade própria, a despeito do resto do corpo. 

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Esta poderá ter sido a inspiração para alguns dos conflitos retratados na série entre os innies e os outies - as versões das personagens que vivem dentro e fora do ambiente de trabalho. É o caso da personagem Helly R, interpretada pela atriz Britt Lower, cuja innie entra em confronto direto com a respetiva outie quando esta se recusa a anular o procedimento que mantém uma versão de si a trabalhar indefinidamente.

Para Alexandre Castro Caldas, neurologista e diretor do Instituto de Ciências de Saúde da Universidade Católica Portuguesa, no entanto, a ideia de hemisférios com vontades separadas é tão ficcional quanto a própria série. "Isso foi uma fantasia que se criou na década de 70, baseada em literatura de pessoas que nunca lidaram com pacientes", afirma à SÁBADO, explicando que os hemisférios "estão em comunicação constante e funcionam como órgão único".

O especialista acrescenta que, no dia a dia, "estamos sempre a ir buscar informação aos dois hemisférios", uma área que a neurociência ainda não compreende com clareza. "Para percebermos como a informação se dispersa pelo cérebro em funções mais sofisticadas, é preciso perceber os fatores de integração entre os hemisférios", explica, dizendo que a neurociência está "a criar modelos matemáticos para fazer as conexões entre os polos, mas ainda são muito grosseiros".

Quanto à possibilidade de virmos a separar mentes num mesmo corpo, como sugere a série, o neurologista afirma que essa hipótese "está muito longe daquilo que conhecemos sobre a função cerebral". Esclarece que "é impossível separar a identidade da memória", na medida em que "a memória é a nossa forma de sustentar a nossa experiência de vida, em conjunto com os nossos genes".

Dado que a identidade é o resultado da interação entre a nossa biologia e experiência, poderíamos dar à mesma pessoa outra identidade se ela tivesse outra experiência e memórias? "Provavelmente", responde Castro Caldas, "mas tem que haver harmonia entre memórias, que são muitas e muito diferentes" - "o sistema que lida com memória episódica é completamente diferente do da memória autobiográfica, são memórias distintas que não conseguimos separar ou considerar em bloco".

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