Sábado – Pense por si

Os estranhos códigos do Opus Dei

Usam cilício cravado na coxa, autoflagelam-se enquanto rezam, têm orações de manhã à noite, e consultam um guia de sete mil livros proibidos. O dia-a-dia dos membros do Opus Dei contado por qum o viveu e por quem não aguentou mais.

A carta de Paulo pedia que o deixassem aderir ao Opus Dei como "sócio honorário". "Honorário?", espantou-se o responsável da Obra. "É numerário. Escreve lá outra vez", ordenou. Após a correção, o candidato foi avisado: "Agora há certas coisas que não podes fazer, como ir a espetáculos..." O rapaz de 17 anos não estava a perceber: "Então e quando tiver namoradas, não as posso levar a espetáculos?" "Namoradas?! tu não vais ter namoradas", respondeu para explicar ao mais recente membro da Obra de Deus que tinha acabado de se comprometer com o celibato. "Eu não sabia nada, tinha apenas boa vontade", lembra agora Paulo Emiliano, muito depois de ter estudado no clube Xénon, onde se sentiu cativado pela forma vigorosa como a Obra defendia os valores da Igreja. Mas esconderam-lhe qualquer coisa: "Dá a ideia de que queriam à viva força encher o Opus Dei. Estou convencido de que imensa gente entrou e saiu porque não se adaptou."

Depois foi sendoinformado das novas regras da sua vida: não poderia ter melhores amigos - na Obra são todos amigos por igual e as confidências devem ser guardadas para a conversa semanal com o diretor espiritual; teria de entregar o dinheiro e presentes que recebesse; seria reprovável o convívio com raparigas; iria a uma missa diária e dedicaria vários períodos à meditação; teria uma confissão semanal; beijaria o chão todas as manhãs depois do primeiro "minuto heróico" do dia - que implica sair da cama assim que se acorda; todas as noites rezaria três avé-marias de braços erguidos, ajoelhado junto à cama; e as idas ao cinema, a jogos de futebol e a outros espetáculos eram proibidas. Quando estreou o filme Guerra das Estrelas, implorou ao seu diretor: "Prometo que nunca mais vou ao cinema, mas agora não posso deixar de o fazer. Só desta vez." Não o deixaram ir.

Seguia também as práticas de mortificação corporal, para oferecer o sacrifício a Cristo, mas também porque "a dor cortava a gula, a vontade do corpo de querer mais". Uma vez por semana devia autoflagelar-se despido com a disciplina - uma espécie de chicote de corda -, fazendo-a incidir nas nádegas enquanto rezava uma oração: "Aquilo dói, rezava o pai-nosso muito depressa e usava a disciplina duas ou três vezes em toda a prece." Habituou-se ao cilício - um cinto de metal com grampos que ficam cravados na coxa duas horas por dia: "em meia hora as marcas desapareciam." E enrolava-se em cobertores quando dormia no chão. Mas não conseguiu lidar com o duche frio. Após várias tentativas, questionou-se: "Sou parvo ou quê?" E começou a tomar banho de água quente.

Após dois anos como numerário (como são chamados os membros internos no Opus Dei), percebeu que o celibato não era para ele. Ainda esteve mais três anos como supranumerário (membro externo obrigado a sujeitar-se a menos regras), mas depois decidiu sair. Quando chegou o dia de São José, 19 de março, em que todos os membros têm de renovar o compromisso com a Obra, não o fez. Hoje, aos 47 anos, estedesignergráfico da Fundação Gulbenkian continua ligado ao Opus Dei, apesar de todas as críticas - é ele que desenha o boletim informativo, por um preço simbólico.

As práticas de mortificação corporal são talvez o aspeto que mais impressiona quem descobre a forma como os membros da Obra vivem o dia-a-dia. Mas para eles o fundamental é a procura da santificação pelo trabalho e a busca de um perfeccionismo nas pequenas coisas do dia-a-dia por amor a Deus.

O cilício e as disciplinas são as mortificações mais conhecidas. Estes objetos vendem-se, por exemplo, no Carmelo de Coimbra (a Irmã Lúcia seguia estas práticas). "A mortificação melhora a pessoa na medida em que a une a Jesus, que sofreu para que outros não sofressem. Não tem a crueldade nem muito menos o fim perverso do retrato que O Código Da Vinci popularizou. É materialmente impossível que o uso das disciplinas faça sangrar ou provoque algum mal à saúde; provoca apenas um ligeiro incómodo. E é sempre voluntário", sublinha Pedro Gil, o advogado que gere a comunicação do Opus Dei em Portugal. Segundo ele, muitos membros são informados destes rituais antes de pedirem a admissão.

António Carlos Brolezzi não teve essa sorte. Este professor de Matemática brasileiro, de 42 anos, e autor do livro Memórias Sexuais no Opus Dei, foi numerário entre 1985 e 1995. "Jamais ia suspeitar que as pessoas se chicoteavam. Descobri o cilício e a disciplina por acaso. Mexi numa caixinha num armário e apanhei um susto", conta àSÁBADO. Depois numa aula falaram da mortificação corporal. "É terrível."

Ao fim de seis meses pediu para sair, mas disseram-lhe que tinha de rezar mais para construir a vocação. Não queria sair zangado e acabou por ficar dez anos, com menos 15 quilos e depois de ter dado à Obra 250 mil reais (pouco menos de 94 mil euros).

O fundador, Josemaría Escrivá de Balaguer, propôs mais uma mortificação exclusivamente para as numerárias: que dormissem habitualmente sobre tábuas de madeira em cima da cama. Porquê só para as mulheres que vivem nos centros da Obra e não também para os homens? "Talvez por o fundador ter particular necessidade de uma ajuda robusta e generosa das suas filhas espirituais", responde Pedro Gil.

Há também uma vocação exclusiva do sexo feminino, que é a das numerárias auxiliares - na prática, são as mulheres que tratam das tarefas domésticas, mesmo nos centros de homens. Rosa Araújo, 47 anos, sétima mais nova de 14 irmãos, é uma das quatro numerárias auxiliares do Centro do Dafundo. Trata das refeições, das limpezas, das arrumações e tem todos os outros compromissos espirituais das numerárias (só deixou de usar o cilício por indicação médica). E não se sente inferiorizada, nem discriminada: "Só a mulher é que pode ser mãe e tem mais condições para dar um ambiente acolhedor à família".

Pedro Gil tenta justificar esta particularidade: "As mulheres muitas vezes descobrem mais facilmente as necessidades dos outros, sabem pôr-se na posição dos outros, conseguem intuir aquilo que o outro procura mesmo antes que lho peça. Tudo isto ajuda, sem dúvida, a fazer família." Mas reconhece: "O Opus Dei não foi fabricado num laboratório, ou desenhado num quadro depois de uma discussão entre peritos."

José Maria André, 50 anos, é professor de Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico e vive como numerário na residência dos Montes Claros, perto da Universidade Católica, em Lisboa. Esforça-se por cumprir as principais práticas de mortificação (no fim da entrevista àSÁBADOrevelou que tinha estado todo o tempo com o cilício na coxa). Mas acrescenta outras pequenas mortificações, como se fossem sacrifícios e alegrias que oferece a Deus ao longo do dia: não pôr açúcar no café, beber água apenas meia hora depois de sentir sede ou trabalhar quando não tem vontade.

A fé domina um dia normal na vida deste professor. Após o "minuto heróico" que o faz sair da cama às 6h30, reza para oferecer o dia a Deus; segue-se uma oração com os outros quatro numerários que vivem na residência e uma missa, antes do pequeno-almoço. Pode ir para o Instituto Superior Técnico a pé, quando tem tempo, ou de carro (num veículo da Obra), mas faz questão de ir a rezar o terço, mesmo no trânsito. Às 12h recita o angelus. Quando regressa à residência, dedica pelo menos 15 minutos a leitura espiritual, mais novos momentos de oração. Antes de se deitar (pelas 22h30), reza ajoelhado junto à cama, com os braços erguidos, três avé-marias.

Nos intervalos, trabalha e estuda (tem dois doutoramentos, um em Engenharia Mecânica, outro em Teologia). Só vê televisão quando há algo de extraordinário que lhe interesse muito. E a última vez que foi ao cinema foi para ver o documentário Fátima na Rússia (diz que não pediu autorização, mas aconselhou-se com outro membro da Obra antes de ir).

Não viu nem leuO Código da Vinci, apesar de a Obra lhe ter pedido, para que alguns membros estivessem a par do conteúdo do livro e pudessem falar à comunicação social. "Nem sequer o folheei. O livro faz-me um bocadinho de pena, porque há coisas sérias que não podem ser tratadas com ligeireza, com brincadeira e com pouca verdade. Acho que é uma exploração comercial do Opus Dei."

Também nunca leu livros de José Saramago, mas critica-o: "Tenho noção de uma série de temáticas que ele aborda noMemorial do Conventoou noEvangelho Segundo Jesus Cristoe julgo que não está bem." Nem a atribuição do Nobel da Literatura o convence: "Como os suecos não sabem português, ou estão a apreciar a qualidade de tradução ou as histórias escandalosas. Não estão a apreciar a literatura."

Estes livros de Saramagosão claramente desaconselhados aos membros da Obra, por se considerar que levantam problemas e põem em causa a fé católica. Os vários membros da Obra entrevistados pelaSÁBADOassumiram que nunca tinham lido um livro do Nobel da Literatura, por não gostarem da sua visão do cristianismo.

O índex seguido pela prelatura chama-seGuia Bibliográficoe avaliava, na última edição conhecida (2003), 60 mil obras. "Ao lerem um livro conotado com temas de religião ou moral, é costume as pessoas informarem-se como esse livro está classificado", explica o professor de Engenharia. As notas vão de 1 a 6, sendo o 6 atribuído aos 7.135 livros interditos, expecto quando houver uma autorização do prelado, o responsável máximo do Opus Dei no mundo inteiro. José Maria André leuA Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz, manifestou a sua discordância face à nota atribuída ao livro e ela foi alterada, tornando o livro mais acessível.

Esta classificação, que está disponível nos centros do Opus Dei para consulta sob a forma de um CD, é assumida como uma recomendação, mas muitos ex-membros interpretam-na como proibição.

É o caso de Véronique Duborgel, 44 anos, que acaba de lançar em França o livro No Inferno do Opus Dei, onde descreve a sua experiência de 13 anos (1983-1996) como supranumerária - vivia em casa com a família, mas frequentava todas as atividades da Obra. Além da literatura, as recomendações estendiam-se ao cinema (que, no caso dos supranumerários, não é proibido): devia fechar os olhos em cenas obscenas, como um beijo entre duas pessoas deitadas.

Um dia depois de Véronique ter escrito a carta a pedir a admissão na prelatura (numa viagem a Roma), emocionou-se e chorou quando viu o seu noivo a falar com o Papa João Paulo II no meio da multidão. Uma jovem da Obra aproximou-se e disse-lhe que tinha de se controlar, que aquele comportamento não era digno de um membro do Opus Dei.

Sem saber, tinha acabado de levar a sua primeira "correção fraterna": quando um membro deteta um erro de outro membro deve informar o diretor do centro, que encarregará alguém de fazer o reparo. A autora descreve assim o primeiro de muitos episódios em que se sentiu vigiada, falando num sistema totalitário, que convida à delação.

O marido de Véronique chegou a receber uma "correção fraterna" porque um dos filhos deu um abraço a um numerário - gesto considerado demasiado afectuoso, que poderia revelar uma tendência para a homossexualidade, disseram-lhe.

Um dia o bebé de três meses de um casal amigo sofreu morte súbita em casa de Véronique, o que provocou momentos dramáticos. Nessa tarde, ela tinha uma reunião semanal de supranumerárias e avisou que ia faltar, dadas as circunstâncias. Responde- ram-lhe que, pelo contrário, devia ir ao encontro porque se iria sentir melhor. Quando chegou, a diretora deu-lhe um sermão por se encontrar num estado lastimável, pouco composta e sem alegria. Procurou apoio num padre da Obra, que também a repreendeu. Ninguém teve uma palavra de compreensão para a tragédia.

Noutra circunstância, queixou-se a um padre do Opus Dei que o marido a aterrorizava e não a deixava falar à vontade. Ouviu como resposta: "É a tua cruz, carrega-a sem te queixares e faz do teu lar um espaço luminoso e feliz." Véronique Duborgel viu-se forçada a aguentar tudo, sem se queixar e sem sair da Obra, até se encher de coragem. Às 22h de 19 de Março de 1996, dia de São José, uma numerária ligou-lhe a perguntar se se tinha esquecido de renovar o compromisso que a ligava ao Opus Dei. Não era esquecimento, ia mesmo deixar a prelatura. Ainda foi convocada para uma reunião de três horas com uma diretora do Opus Dei, que rapidamente se transformou num interrogatório para perceber quem a tinha influenciado.

Um dos catos de libertação de Véronique depois da rutura foi comprar a roupa de que gostava, sem temer "correções fraternas". Antes, revirou os armários e encheu quatro sacos com as peças que eram recomendadas pela Obra e que já não queria voltar a usar. Em reação ao livro, o Opus Dei emitiu um comunicado onde toma nota do ambiente de opressão descrito e lamenta o sofrimento que lhe possa ter causado.

Virgínia Magriço, 59 anos, leu um pequeno resumo do drama de Véronique e não compreende: "Se me tivesse sentido tão mal, tinha batido com a porta ao fim de um mês." Supranumerária há 40 anos (ajudou a fundar os colégios Planalto e Mira-Rio), licenciada em Filosofia, é bibliotecária no Instituto de Investigação Científica e Tropical (acha que não vale a pena ler livros de José Saramago, mas já leu vários de Jorge Amado, outro escritor mal visto no índex).

Esforça-se por rezar o terço em casa, com o marido e alguns dos nove filhos, mesmo que seja enquanto arruma a cozinha: "O terço mais mal rezado é o que não se reza." Uma das filhas é numerária, saiu de casa aos 18 anos para ir para um centro da Obra. "Custou-me como quando um filho sai de casa para se casar", compara.

Mais dolorosa foi a situação em casa de um conhecido político português de centro--direita que pediu para não ser identificado nesta reportagem: ainda passou muito pouco tempo desde que a filha deixou a Obra, após dez anos como numerária. Quando a família puxa o assunto, ela desvia a conversa.

Poucos dias depoisde fazer 18 anos, a filha deste político chegou a casa e avisou que iria viver para um centro do Opus Dei. "Quando partiu ia muito determinada", recorda o pai. Como a filha ia continuar a estudar mudando apenas o local onde vivia, lembra-se de ter sentido: "Então a família é que é um entrave?!" Mas respeitou a decisão.

Já a mulher teve mais dificuldade em aceitar. Os encontros entre os pais e a filha eram muito espaçados e curtos. Num casamento de família, por exemplo, esteve pouco tempo na festa para voltar ao centro onde vivia. O político tem agora testemunhado as dificuldades da filha para se adaptar à vida fora da Obra.

Quem tem uma ideia aproximada sobre o que ela estará a viver é a espanhola Agustina Muñoz, 54 anos, uma ex-numerária que coordena um sítio de Internet espanhol (www.opusliboros.com), onde desde 2002 foram publicados 12 mil depoimentos e mensagens de ex-membros do Opus Dei. Três vezes por semana, às 21h, são divulgadas dezenas de cartas para trocar experiências sobre a prelatura. "As pessoas saem porque não aguentam mais, mas sentem que tiveram culpa ou que não foram suficientemente generosas. Têm que desaprender tudo o que aprenderam na Obra. Vêm de um sistema totalitário, que lhes absorveu a cabeça e o coração", diz àSÁBADOAgustina Muñoz. Ela própria esteve um ano a dizer que queria sair, mas respondiam-lhe que era uma tentação e que tinha vocação. "Queria que me dissessem: ‘Não te preocupes que não vais para o inferno, também podes ser feliz na tua nova vida.’" Descreve a viagem de autocarro para casa dos pais, após deixar a Obra, como "os 30 minutos mais felizes" da sua vida.

Uma ajuda para alimentar o seu sítio na Internet tem vindo surpreendentemente de dentro do Opus Dei. Tem conseguido publicar uma série de documentos internos que mostram o funcionamento e o dia-a-dia da organização. "Há pessoas que estão na Obra e que me enviam documentos porque estão cansadas, querem que algo mude. Para isso é preciso que a Igreja leia e veja como funciona a Obra por dentro", explica Agustina.

Os documentos publicadosdão uma ideia bastante precisa sobre a doutrina do Opus Dei relativamente ao inferno, ao matrimónio, ao modo de vestir dos sacerdotes, além de guiões para conversar sobre a vocação e os 27 passos para levar alguém que não conhece a prelatura a pedir a admissão em seis meses. Agustina Muñoz divulga também relatórios sobre membros em crise de vocação, e o documento-tipo para os numerários fazerem o testamento - ao fim de cinco anos, quando prestam fidelidade e ficam ligados eternamente ao Opus Dei, são obrigados a indicar a quem deixam os bens. Pedro Gil frisa que o testamento é livre, mas normalmente os bens são deixados à Obra, ou a institutos sob a sua orientação espiritual.

Paulo Andrade alterou logo o seu testamento quando saiu da Obra. Foi numerário entre os 15 e os 30 anos, até 1993. As mensagens de Portugal que chegam ao sítio espanhol Opuslibros são reenviadas por Agustina Muñoz para ele e para um grupo restrito de outros portugueses, para darem acompanhamento. Paulo Andrade, comerciante, licenciado em Direito, usa o nome verdadeiro (muitos dos ex-membros que desabafam na Internet sentem-se mais seguros usando um pseudónimo).

"Uma pessoa deixa de fazer a mortificação corporal e não custa nada. O grande problema é o controlo da mente", acusa. Destaca a conversa semanal com o diretor espiritual (com quem se deve partilhar todas as dúvidas e falhas), os encontros de meditação com os outros numerários e as "correções fraternas".

"Toda a gente vigia toda a gente. Parti uma perna a jogar futebol e era a minha irmã que me levava à fisioterapia. Fizeram-me uma correção fraterna porque não era bom um numerário entrar num carro com uma mulher sozinha sem autorização", recorda. "Comecei a não suportar viver naquele esquema quadriculado de horários." Levou muita gente a integrar a Obra. "Arrependo-me!" Ainda assim, alguns ficaram depois de ele sair.

Paulo Andrade resume as cinco principais dificuldades de quem quer deixar o Opus Dei: perceber que a instituição está errada, admitir que foi um desperdício o tempo passado na Obra, falta de meios financeiros quando já não há laços com a família, o facto de o trabalho estar ligado ao Opus Dei e o receio da condenação divina.

Depois de sair, nas primeiras vezes que foi ao cinema, Paulo Andrade sentia que estava a fazer algo de errado. Mesmo que tenha havido mudanças na Obra, diz que não passarão de cosmética. "Quando deixarem de ser como são desaparecem. A partir do momento em que as pessoas começarem a pensar, a ler livros e a ir ao cinema, aquilo acaba, porque a pessoa fica em contacto com o mundo real. O confronto é demolidor."

O Opus Dei tentou recrutar figuras públicas portuguesas, como Marcelo Rebelo de Sousa, Miguel Beleza, António Guterres e Roberto Carneiro, que foram desafiados por Adelino Amaro da Costa a participar numa conferência sobre a Universidade, em Julho de 1970, na Residência da Beira, em Coimbra. "Tentavam convidar os melhores alunos para ir a essas atividades. Iam-se aproximando, aproximando... Quem me convidou para entrar foi o Adelino. Mas eu disse logo que tinha um feitio muito rebelde", recorda Marcelo Rebelo de Sousa. E tinha mesmo. Nesse encontro de Coimbra alguns dos alunos quiseram sair à noite. "Deram-nos uma hora para regressar, mas voltámos às 4 da manhã. Estava o padre e o dr. Mota Amaral à nossa espera..."

"Fizeram-nos má cara", recorda Miguel Beleza. "Fui assediado durante muito tempo pelo Opus, pensavam que eu ia ser um tipo importante, mas chateei-me com o elitismo", recorda o ex-ministro das Finanças. Marcelo Rebelo de Sousa não aderiu à Obra, mas apoiou financeiramente atividades da secção de mulheres, a pedido da ex-secretária de Adelino Amaro da Costa.

O ex-ministro da Defesa, que seguia com Sá Carneiro no avião que caiu em Camarate, viveu a maior parte da sua vida como numerário. Quando foi criado o CDS, Amaro da Costa apresentou a Freitas do Amaral pelo menos mais três membros da Obra que ajudaram a fundar o partido: Silvério Martins, Emídio Pinheiro e Francisco Oliveira Dias, que chegou a ser presidente do Parlamento.

Num passeio na praia do Guincho, numa manhã de Inverno antes do 25 de Abril, Adelino Amaro da Costa perguntou a Freitas do Amaral se queria conhecer melhor o Opus Dei, mas o amigo declinou. Anos mais tarde, os dois dirigentes do CDS teriam uma conversa em que Amaro da Costa confidenciaria que se tinha apaixonado por uma professora universitária. "Ele próprio me disse que não teve qualquer dificuldade quando apresentou o pedido para se desvincular do celibato para casar", recorda Freitas do Amaral àSÁBADO.

Bagão Félix, outro ex-ministro, também foi abordado pela Obra e aceitou participar num retiro espiritual. "Foi uma experiência interessante." Não aderiu para preservar a autonomia: "A minha relação com Deus é a que quero ter em cada momento."

Teresa Ferro, 50 anos, médica especialista em Medicina Interna, tinha 18 anos quando pediu para ser numerária. Tem dois irmãos também numerários e a mãe é supranumerária. Além de cumprir o plano de orações e as mortificações (usa o cilício e as disciplinas, mas deixou de dormir em tábuas de madeira), dirige a residência dos Álamos, onde há mais cinco numerárias.

É diretora espiritual de várias raparigas e é ela que é consultada de cada vez que uma numerária entende dar uma "correção fraterna" a outra. "É como pedir um conselho, e também para garantir a objectividade. Posso saber se ajuda, se é oportuno e também para evitar que todos deem correções fraternas pelo mesmo motivo", explica.

Como diretora deve também promover atividades na residência que respeitem o espírito cristão, incluindo os filmes que são visionados. Os rapazes podem ir à residência, mas não estão autorizados a passar de uma zona comum na entrada.

O dia 19 de Março é vivido de forma especial em todos os centros do Opus Dei. Os membros devem revalidar o seu vínculo à Obra - não se trata de assinar papéis, basta um pequeno momento de meditação sem fórmulas predefinidas. Depois é necessário avisar o diretor do centro. Na residência dos Álamos fica tudo subentendido: "Teresa, já está!" Mas este ano, segundo informação oficial do Opus Dei, mais quatro dos cerca de 1400 membros portugueses decidiram não renovar o compromisso.

Cuidados intensivos

Loucuras de Verão

Até porque os primeiros impulsos enganam. Que o diga o New York Times, obrigado a fazer uma correcção à foto de uma criança subnutrida nos braços da sua mãe. O nome é Mohammed Zakaria al-Mutawaq e, segundo a errata do jornal, nasceu com problemas neurológicos e musculares.