José Vilhena escreveu tudo sobre a sua vida aos 26 anos. O documento só foi encontrado agora por um sobrinho. Veja ainda a lição que deu à polícia política sobre o que o levou a desenhar nove postais a caricaturar o regime
"27 de Agosto [1953] – (…) Quando eu já estava convencido de que lhe tinha feito compreender toda a minha repulsa, uma noite, dentro de uma carruagem deserta da Linha do Estoril ela propôs-me (simplesmente) casar-se comigo. Não mostrei surpresa. Fiquei apenas pasmado, sem compreender. Ela aproveitou o silêncio provocado pela minha estupefacção para atirar os seus argumentos. 1º - Casaríamos civilmente, estando eu sempre a tempo de me divorciar, caso não me sentisse bem. 2º - Ela tem umas tias muito ricas e muito velhas de quem é a única herdeira. Desenvencilhei-me o melhor que pude. Mas só passados quatro dias ela se convenceu de que eu não me casaria nem civil nem religiosamente, nem de qualquer outra forma. Então desistiu."Esta é uma das passagens do diário do nosso humorista mais picante, José Vilhena, falecido no ano passado. O documento foi agora encontrado pelo sobrinho, o deputado socialista Luís Vilhena, enquanto fazia as últimas arrumações no armazém do tio, no Campo Mártires da Pátria, em Lisboa. Um cobertor para "uma senhora amiga" Além das várias passagens sobre a sua relação com as mulheres, o diário é uma janela para o resto do quotidiano de José Vilhena na Lisboa de 1953. Pode surpreender-se com as passagens mais interessantes do documento na edição desta semana da SÁBADO. Mas não vai lá encontrar as histórias que se seguem, sobre a relação entre o humorista e a PIDE. Foi em Janeiro de 1958 que o director dos Serviços de Censura remeteu ao director da polícia política um pedido de informações sobre "a índole política do caricaturista José Vilhena", que então dirigia a revista humorística O Mundo Ri. Passado uns meses, o chefe de brigada encarregado do assunto baseou-se no prólogo da colectânea de desenhos Pascoal, para concluir que o cartoonista "parece ter ideias socialistas e não concordar com a maneira como está constituída a sociedade da Europa ocidental". Foi detido pela primeira vez em 1962, por se encontrar no meio dos estudantes que protestavam em plena crise académica, mas justificou a sua presença ali apenas por ter ido à Universidade levar um cobertor "a uma senhora amiga". "Um ultraje", dizia a PIDEDois anos depois, o caso já não foi tão simples. José Vilhena encomendou à Bertrand a impressão de 6 mil colecções de 9 postais (54 mil no total), a que deu o título "Cenas da vida portuguesa – personagens e costumes na segunda metade do século XX". A PIDE considerou os postais e as suas legendas um "ultraje às instituições vigentes e ao Governo da Nação, com o propósito de divulgar afirmações falsas e tendenciosas, prejudiciais ao bom nome de Portugal", como pode ler-se no processo consultado pela SÁBADO na Torre do Tombo. E tentaram estabelecer uma ligação política, que não existia: "O seu autor, José Vilhena, além de expressar uma ideologia oposta à do Estado, revelou ainda pretender desorientar a opinião pública, com a divulgação de tais calúnias e falsidades e, consequentemente, prejudicar os interesses e o prestígio da nação portuguesa. Tais propósitos, além de auxiliarem os inimigos da sociedade e do Estado, favorecem ainda, sem qualquer dúvida, os objectivos da associação ilícita, secreta e subversiva, que usa a designação de ‘Partido Comunista Português’".Foram apreendidas 4.279 colecções de postais – ou seja, ainda foram vendidas 1.700. José Vilhena foi detido a 11 de Julho, tal como Armando Paulouro e António Simões Nunes, sócios-gerentes da empresa distribuidora, a Specil. Interrogado pela PIDE, o humorista respondeu que "não foi sua intenção caluniar as instituições vigentes nem o governo da nação, mas simplesmente apontar alguns aspectos chocantes à consciência nacional e aos poderes públicos na boa fé de que, sublinhados pelo exagero que a caricatura empresta aos assuntos que foca, pudesse ser activada a sua resolução"."Explicações minuciosas sobre cada um dos desenhos"Foi libertado duas semanas após a detenção, mas apenas depois de pagar uma caução de 25 contos (8.600 euros a preços actuais). Só que voltou a ser chamado à PIDE, para "prestar explicações minuciosas sobre cada um dos desenhos e legendas da colecção de 9 postais e a pormenorizada razão de ser da redacção de todo o conteúdo dos mesmos, não se esquecendo de separar (em cada caso) o que considera realidade do que reconhece ser exagero e de indicar concretamente a forma como, pelo exagero que a caricatura empresta aos assuntos que foca, pudesse ser activada a sua resolução".Uma anedota explicada perde parte da graça, mas nesse segundo interrogatório José Vilhena acabou por dar uma lição sobre humor aos três elementos da PIDE que tinha à sua frente: o inspector Fernando José Alves, o chefe de brigada Américo da Silva Carvalho e o agente Herberto Alves. Os moralistas e o "receio do ridículo"Explicou primeiro que "desde sempre e inevitavelmente, a caricatura viveu do exagero" e falou do efeito poderoso do medo do ridículo: "Através dos tempos, a caricatura muito tem contribuído para consciencializar os homens dos seus deveres cívicos e sociais, visto que o receio do ridículo actua fortemente sobre a natureza humana. Os próprios moralistas usaram frequentemente a sátira para acordar nos homens o sentido da dignidade e do respeito por si próprios, levando-os a colocar-se acima dos interesses pessoais e a regular a sua vida pelas normas que deviam estar presentes em qualquer sociedade cristã."Sobre o título da colecção de postais - "Cenas da vida portuguesa – personagens e costumes na segunda metade do século XX" – teve de dizer que "o tom sério e doutoral desses termos, colocados numa publicação de bom humor, adquire um significado inteiramente diferente do que teriam noutro local". Ou seja: "Este processo de conseguir o cómico pelo sério é frequentemente usado pelos humoristas sendo um dos seus métodos mais comuns e também mais acessíveis ao leitor". Mas não fugiu ao "convite" que lhe foi feito pela PIDE e explicou, detalhadamente, postal a postal, o que o tinha levado a concebê-lo. Os postais, com as suas legendas originais, e a explicação dada por José Vilhena podem ser vistos e lidos aqui. "Incorrigível e manhoso"José Vilhena publicou dezenas de livros, todos interditos pela censura, onde criticava o clero e o Estado Novo e onde desenhava figuras femininas seminuas. Os censores encaravam-no como uma afronta permanente à moral e ao regime político. Um dos censores, Joaquim Palhares, chamou-lhe mesmo, num relatório, "o incorrigível e manhoso Vilhena", no despacho onde propôs a proibição do livro Humor Parisiense, em Dezembro de 1965. No ano seguinte, em 1966, o cartoonista foi novamente detido pela PIDE, desta vez pelo lançamento dos livros O Beijo e Tenha Maneiras (24 mil exemplares), para as autoridades averiguarem se estariam em causa "crimes contra a segurança do Estado". Desta vez esteve preso em Caxias três meses, tendo tido tempo para camuflar o início de um livro, em escrita quase microscópica, num maço de tabaco Sagres aparentemente cheio (como pode ver na foto acima). A falta de "fair play" da PIDEDa prisão, onde se encontrava em regime de isolamento contínuo, Vilhena escreveu ao director da PIDE, a pedir para ser libertado sob caução. Primeiro argumento que invocou: a "pequena gravidade do delito, se é que delito existe – o detido é acusado de ter publicado dois livros humorísticos cujo conteúdo, segundo julga crer, conteria, para alguns, matéria de crime contra a segurança do Estado. V. Exª., se se der ao incómodo de ler os referidos livros, capacitar-se-á do ridículo desta acusação, pesando sobre quem não pretendeu outra coisa além de fazer sorrir os leitores".Depois teve de retomar os seus ensinamentos sobre humor: "Trata-se de livros humorísticos e por isso o conteúdo não pode ser tomado no rigor das palavras. Se assim se procedesse, constituiriam, por exemplo, insultos à classe médica, à magistratura ou ao exército todas as anedotas ou artigos humorísticos em que intervêm médicos, magistrados ou soldados e cujos textos (ou desenhos) tomados à letra, seriam ofensivos. (…) Os próprios membros das profissões visadas são os primeiros a ‘achar graça’ e a rir com as sátiras que os focam, jamais se sentindo ofendidos, quer como indivíduos, quer como classe. Era pois esse espírito superior de compreensão e tolerância, em sentido de humor, esse ‘fair play’ que o acusado esperava da parte da polícia." A carta não surtiu o efeito pretendido. O director da PIDE não teve o tal fair play e Vilhena só saiu da prisão ao fim de 55 dias.Leia a história completa na edição n.º655 da SÁBADO, nas bancas a 17 de Novembro.
O cartoonista mulherengo que explicou à PIDE o que era o humor
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