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"Muitos rapazes continuam a acreditar que o amor e a violência podem coexistir na relação"

'Muitos rapazes continuam a acreditar que o amor e a violência podem coexistir na relação'
Vanda Marques 20 de julho de 2025 às 10:00
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Novo estudo sobre a violência no namoro alerta para a preocupante aceitação do ciúme. Mais de 40% dos jovens validam a violência sexual e psicológica. É preciso mudar as mentalidades, defende a psicóloga Susana Costa-Ramalho.

As ideias românticas, muitas vezes passadas em filmes ou livros mais antigos, podem estar na origem da violência no namoro. É isso que o estudo, feito com jovens entre os 18 e os 30 anos, nos revela. Trata-se do "Escala de Mitos do Amor Romântico" (EMAR), desenvolvido por diferentes investigadores da Ramon Llull University em Barcelona, Espanha, em conjunto com a investigadora Susana Costa-Ramalho. A professora da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa (FCH-Católica) alerta para o facto de hoje em dia o ciúme, o controlo e até a violência estarem quase normalizados em nome do "amor verdadeiro".

Aliás, segundos dados recolhidos no estudo 58% dos jovens portugueses acreditam que o "amor verdadeiro supera tudo - mesmo os insultos e o desrespeito". Além disso, metade acredita que "amar é fazer tudo pela outra pessoa, mesmo à custa de si próprios." E 42% concordam que existe uma "alma gémea" predestinada. À primeira vista estas ideias parecem quase sinopses de filmes românticos, mas como explica a psicóloga entrevista à SÁBADO este tipo de preconceitos pode originar violência.  

A investigação, publicada na revista internacional Social Sciences, adaptou e validou a Escala de Mitos do Amor Romântico para o contexto português. Os dados mais alarmantes são o facto de que 64% dos rapazes justificam comportamentos de controlo numa relação e 46.8% das raparigas fazem o mesmo. Além disso, 44% validam a violência psicológica e 41% a violência sexual. Em relação à violência física, 14% consideram um comportamento normal. 

O que mais a surpreendeu nos resultados do estudo?

Talvez não diga que me surpreendeu, pois trabalho com jovens diariamente. No entanto, aquilo que, de alguma forma é inquietante, é o facto destes resultados confirmarem aquilo que, no dia-a-dia profissional também observamos, ou seja a prevalência destas ideias e crenças que sabemos estarem muitas vezes associadas a relações disfuncionais, desequilibradas, não saudáveis.

 

 

Como é que se justifica que este tipo de mitos persistam?

A ideia de que o amor e a violência podem coexistir na mesma relação é, muitas vezes, associada ao passado, a gerações anteriores em que uma certa forma de desigualdade era facilmente aceite nas relações amorosas. Nas relações de hoje, esperaríamos que, numa geração que procura tanto a sua liberdade, autonomia e individualidade, estas ideias não persistissem mas, na verdade, não é isso que está a acontecer.

Quando falamos de mitos, falamos de ideias que as pessoas vão concebendo ao longo do seu desenvolvimento. "O que é isto de uma relação amorosa?", "O que é que faz ou não parte de uma relação amorosa?". Estas ideias vêm da nossa educação, do contexto em que nos inserimos, mas também daquilo que vamos vivendo ao longo da nossa vida.

A verdade é que muitos rapazes continuam a acreditar que o amor e a violência podem coexistir na relação. Esse foi um dos mitos que mais se elevou entre os rapazes e, por exemplo, no caso das raparigas, o mito que mais se destacou foi a ideia de que existe a metade da minha laranja, alguém que me completa e que preenche.

De que forma estas ideias simples, escondem problemas mais graves?

Talvez não dissesse que "escondem", mas associam-se a outro tipo de fragilidade. Voltando a neste mito da "meia laranja", a ideia de que há alguém que me completa, tem logo uma ideia errada subjacente, que é a ideia de que eu não estou completa à partida e de que eu, pessoa inteira, sou incompleta.

O ser humano é inteiro à partida, e não precisa de ser completado numa relação. As relações são muito boas para o ser humano, quando construtivas, saudáveis e edificantes. Quando são abusivas e destrutivas, não trazem nada de bom para a nossa vida e, quando características abusivas estão presentes no par de pessoas que têm uma autoestima mais baixa, que são muito inseguras, que têm uma imagem de si mais negativa, vamos ver aqui certas combinações psicológicas que são muito perigosas.

Quaisquer tipos de ideias pré-concebidas que nos colocam num plano de desigualdade, seja entre homens e mulheres, são potenciadoras do desrespeito e da violência 

Susana Costa-Ramalho

Como se explica as diferenças de opinião entre homens e mulheres?

A violência física está comummente mais associada aos homens e a violência psicológica às mulheres, mas com uma diferença que não é tão significativa assim. Ou seja, temos muitas raparigas também a exercer controlo nas suas relações, pelo que não se trata de comportamentos exclusivos dos homens.

Podemos concluir que para os homens a violência é mais normal? Porquê?

Existe a questão física, em que nos homens, por terem, normalmente, mais força, poderá prevalecer, mas o controlo e a desconfiança, nos dias de hoje, está muito presente quer entre homens como mulheres.

Podemos dizer que hoje os jovens estão mais violentos?

Não diria que estão a ficar mais violentos, porque não temos dados objetivos que permitam fazer essa afirmação. Sabemos, sim, que a violência prevalece, embora com manifestações diversas nos dias de hoje. Sabemos que existe menos violência física do que há algumas décadas, mas existe. Hoje há uma forma de violência muito menos visível e eventualmente mais ambígua que é a violência psicológica e as questões do controlo, nomeadamente através das redes sociais e dos telemóveis. Os jovens estão muitas vezes em relações de controlo e em que se pressionam para agir de uma certa forma, e para se comportar de uma certa forma.

Está-se a registar um aumento da conteúdos machistas e misóginos nas redes socais, acha que isso contribui para o aumento da violência? Quando se partilham os vídeos de comentários como "as mulheres só servem para ter filhos" ou que "não devem sair de minissaia com as amigas", o que deve ser feito?

Quaisquer tipos de ideias pré-concebidas que nos colocam num plano de desigualdade, seja entre homens e mulheres, ou outras dualidades, são potenciadoras do desrespeito e da violência, pois já estamos a olhar para outro numa situação desigual. Ao estar com um olhar desigual, coloca-me numa posição de poder sobre o outro.

Se eu acho que que a mulher não pode sair com as amigas, mas eu posso sair com os meus, ou que não pode vestir certo tipo de roupa e eu posso vestir o que me apetece, estou a colocar-me num plano de desigualdade. No final da linha, estes comportamentos podem levar à violência. Na verdade, esperar que "o outro" se comporte de uma determinada forma para servir os meus interesses, já pode em si mesmo ser uma violência.

Existe a ideia de que se bate por amor, que demonstra preocupação. Ao primeiro sinal de violência, o que deve o namorado/a vítima deve fazer?

Esta é uma questão central. Todos nós, cidadãos, não só cientistas ou académicos, temos de falar sobre violência, com filhos, sobrinhos, amigos e colegas, compreendendo que estes comportamentos não podem ter justificação.

Uma das ideias avaliada neste estudo é o mito do ciúme. A ideia de que alguém que é ciumento é porque me ama, olhando para o ciúme como sinal de amor. O ciúme não é sinal de amor em momento nenhum. O ciúme é sinal de insegurança e de tentativa de controlo.

Se estou numa relação verdadeiramente de amor e de confiança posso, eventualmente, sentir algum tipo de desagrado por um comportamento de outra pessoa, mas isso tem de ser dialogado, compreendido e enquadrado na relação. Não é o ciúme, no sentido de manifestação e de opressão sobre o que é que o outro pode ou não pode fazer. "Não podes falar com ele" ou "não podes falar com ela" são manifestações que vêm de um lugar de insegurança e de tentativa de controlar o comportamento de outra pessoa. Isso não é amar.

Acha que a sociedade ainda recrimina pouco estes comportamentos?

Diria que sim. Hoje tende-se muitas vezes a enquadrar comportamentos. "Ele fez isso porque estava nervoso" ou "ela só fez isso porque gosta muito de ti". Os comportamentos têm de ser enquadrados, de facto, mas daí a serem desculpabilizados ou aceites é um passo diferente.

Sempre que o comportamento de alguém nos faz sentir desconfortáveis e não conseguimos comunicar isso a essa mesma pessoa, temos de pedir ajuda. Falar com amigos em quem confiamos pode ajudar a  perceber se algum comportamento que está a ocorrer na minha relação é "normal" ou não.

Uma vez ouvi uma colega dizer que há dois tipos de segredos na nossa vida: os bons e os maus. Os primeiros, são aqueles que queremos e devemos guardar. Os que são uma surpresa que estamos a preparar para alguém ou uma festa para um amigo. Esse é um segredo bom e que devemos guardar para nós. Mas os segredos que me deixam desconfortável e tudo o que me deixa reticente devemos partilhar com quem confiamos. Saber pedir ajuda é muitas vezes a coisa mais inteligente que podemos fazer.

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