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Provedora da Justiça pode travar lei que abre porta a cirurgias de mudança de sexo a menores

Marisa Antunes 16 de abril de 2025 às 20:08
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Associação de Defesa da Liberdade fez pedido formal à provedoria com base na inconstitucionalidade da lei. Provedora fala em "indeterminação dos conceitos" e "obscuridade quanto ao papel do consentimento dos visados" para pedir fiscalização.

Recebeu o aval da Ordem dos Psicólogos e foi defendida por figuras como Rui Tavares, do Livre ou Isabel Moreira, do PS, mas a lei que proíbe as Terapias de Conversão Sexual pode vir a ser considerada inconstitucional. O pedido foi feito na semana passada pela provedora da Justiça, Maria Lúcia Amaral, por considerar que está causa em "o grau de indeterminação dos conceitos que definem a conduta proibida e a obscuridade quanto ao papel do consentimento dos visados".

REUTERS/Demetrius Freeman

A Provedoria de Justiça pediu, assim, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo 176.º-C do Código Penal. Este artigo é, por sua vez, aditado pela Lei n.º 15/2024, que consagra o crime de "atos contrários à orientação sexual, identidade de género ou expressão de género". 

A decisão da provedora em questionar o Tribunal Constitucional surgiu após um pedido formal feito pela SALL – Associação de Defesa da Liberdade, há pouco mais de um ano, por considerar que esta lei "de forma orwelliana, criminaliza todas as tentativas médicas, psicológicas ou comportamentais" na abordagem terapêutica a qualquer pessoa, "incluindo de menores", referiu à SÁBADO, Afonso Teixeira da Mota, presidente da SALL.

"Estamos muito satisfeitos com esta decisão da senhora Provedora, a quem a Constituição reconhece a legitimidade especial para suscitar a fiscalização deste caso. Juridicamente, esta lei continua em vigor, mas já está ferida de uma suspeição quanto à sua validade constitucional", sublinhou ainda o responsável, acrescentando que esta lei é "extremamente perigosa e injusta, porque a sua consequência prática seria a de abrir a porta à submissão de menores que sofrem de disforia de género a cirurgias ou outros procedimentos irreversíveis e, ao mesmo tempo, criminalizar qualquer tentativa de oposição dos pais".

A lei contra as terapias de conversão sexual, recorde-se, prevê pena de prisão até três anos ou pena de multa para "quem submeter outra pessoa a atos que visem a alteração ou repressão da sua orientação sexual, identidade ou expressão de género".

Quando foi aprovada em tempo-recorde, no último dia do executivo PS após a queda do Governo, mereceu a crítica dos profissionais de saúde mental por considerarem que a mesma iria criar pressão e "limitar e interferir no livre exercício da profissão". Uma situação ainda mais complexa devido à lei da autodeterminação de género aprovada pelos partidos de esquerda e que na prática permite à pessoa fazer o seu auto-diagnóstico como transgénero, tendo em conta que a incongruência de género deixou de ser considerado um transtorno mental. Assim, tudo passa agora pela auto-determinação e numa lógica de auto-diagnóstico. A SÁBADO questionou o PS sobre este processo legislativo e a sua aprovação, mas até à hora de publicação deste artigo não recebeu qualquer resposta.

Para o psicólogo Abel Matos Santos, com uma experiência de quase três décadas no tratamento de pessoas transexuais na equipa de medicina de género do Hospital Santa Maria, em Lisboa, e de onde também fizeram parte o psiquiatra Daniel Sampaio e a endocrinologista Isabel do Carmo, esta decisão só peca por tardia.

"Esta lei é ideologia travestida de ciência. Trabalho com transexuais, desde 1998, no Santa Maria. Tenho muita experiência. Antigamente, conhecíamos todos ou quase todos os transexuais que havia em Portugal. O transexualismo existe há séculos, é uma patologia residual na população humana e em Portugal havia muito poucos. Mas tudo mudou quando entrou a ideologia na lei e nas escolas", atirou Abel Matos Santos - conhecido por algumas posições controversas -, referindo-se respetivamente à lei da autodeterminação de género e ao manual "Direito a Ser nas Escolas", este último  aprovado pelo ex-ministro da Educação, João Costa e elaborado pela Comissão para a Igualdade de Género.

"É como uma infeção que se dissemina pelo ar junto dos adolescentes"  

O responsável realçou, à SÁBADO, que foi a partir dessa lei que "permite que as pessoas possam escolher elas próprias o seu género deixando os médicos fora da equação, que o número de supostos transexuais disparou imenso em Portugal, passando a ser um dos países, a nível mundial, com mais incidência de novos casos". Atualmente, e por semana, há uma média de 11 pessoas a mudar de nome e género no Cartão de Cidadão, em 2011, por exemplo, era apenas uma.

"É como um vírus, uma infeção que se dissemina pelo ar, especialmente junto dos adolescentes. E, porém, se há altura na vida em que a pessoa não sabe o que é, nem o que quer, é a adolescência! É essa fase da vida associada a indefinição, dúvida, ansiedades, medos...", reforça ainda, lembrando que não é à toa que "os testes de orientação vocacional, escolar e profissional" são feitos na adolescência.

Quando a lei n.º 15/2024, a que vai agora ser analisada pelo Tribunal Constitucional, entrou em vigor, criou de imediato uma pressão adicional para a afirmação do auto-diagnóstico dos pacientes, aligeirando-se uma abordagem que era, até ali, cautelosa.

Até então, os pacientes eram seguidos durante dois anos por equipas multidisciplinares em dois centros de referência diferentes, sem que os profissionais comunicassem entre si sobre aquele doente. No final desse período cruzavam dados e se houvesse opinião de que aquele paciente não era transexual, este era acompanhado de outra forma. Havendo divergência de opiniões prolongava-se o tempo de intervenção por mais algum tempo. "E porquê? Porque os doentes que não são transexuais e que passem por este tipo de intervenção, com hormonas e cirurgias irreversíveis, correm um elevadíssimo risco de suicídio. Está descrito em diversos estudos. E nós não podemos brincar com a vida humana, não é?", questionou ainda Abel Matos Santos.  

Teresa de Melo Ribeiro foi a jurista contratada pela SALL para interpor o pedido formal à Provedoria da Justiça. Também não poupa críticas a quem fez passar a lei contra as terapias de conversão de uma forma ligeira, sem acautelar as devidas consequências para as crianças e jovens em questionamento identitário, ainda para mais no atual contexto ideológico a uma escala mundial.

"A decisão da senhora Provedora da Justiça é absolutamente arrasadora para o legislador e para os deputados que aprovaram esta lei… Recordo que esta lei foi aprovada à pressa, antes de a Assembleia da República ter sido dissolvida, e que, no mesmo dia e numa única sessão plenária do Parlamento, foi aprovada na generalidade, na especialidade e na votação final global, com os votos de todos os partidos da Esquerda e da IL e os votos contra do PSD e do Chega", detalhou ainda Teresa de Melo Ribeiro. 

"Incúria e incompetência" dos partidos e do PR   

A jurista sublinhou que "o requerimento arrasa e revela a incúria, a incompetência, propositada ou não, dos deputados, não só dos que redigiram a lei mas também dos que a aprovaram. E é também um arraso para o senhor Presidente da República (PR), porque, e é preciso recordar, recebeu esta lei numa 5ª ou 6ª feira e no sábado estava a promulgá-la sem um único reparo. Quando esta lei, note-se, que alterou o Código Penal, tem um conteúdo gravíssimo ao nível da restrição de direitos e liberdades fundamentais". 

A advogada espera agora que o "Tribunal Constitucional se pronuncie dando razão à senhora Provedora", ainda que o ideal seria que "antecipadamente o próprio legislador revogasse esta lei que nunca deveria ter sido aprovada na Assembleia da República".  

Isto porque, reforçou ainda à SÁBADO Teresa de Melo Ribeiro, "em todo o mundo ocidental onde há mais anos se têm implementado estas denominadas terapias de afirmação de género, como é o caso dos países nórdicos e do Reino Unido, por exemplo, já estão a recuar e a proibir os tratamentos farmacológicos e cirúrgicos em menores e maiores de idade porque tem havido evidência científica não só da sua não beneficência, mas da sua não beneficência".  

E de facto assim é. O travão a fundo na chamada terapia de afirmação de género preconizada pela WPATH (World Professional Association for Transgender Health), entretanto envolvida em vários escândalos, está a ser colocado em causa em múltiplos países. O Brasil é o exemplo mais recente com o Conselho Federal de Medicina a proibir, na passada sexta-feira, os bloqueadores hormonais para menores em questionamento identitário, bem como o aumento da idade mínima de 18 para 21 anos para a realização das cirurgias de mudança de sexo. Mas já outros se tinham antecipado com diversas medidas como a Suécia, Dinamarca, França, Reino Unido, nestes casos depois de terem surgido dúvidas sobre a falta de dados a longo prazo para a melhoria na saúde mental destes jovens na sequência do uso de terapias hormonais. Na Argentina a decisão foi anunciada já este ano, duas semanas depois do presidente Javier Milei ter feito um discurso onde ligou a "ideologia de género" à pedofilia. Nos Estados Unidos, cumprindo uma promessa eleitoral de Donald Trump, todas as terapias de transição para menores perderam financiamento federal.

Pais organizam-se

Por cá, a Direção-Geral de Saúde (DGS) mantém a aplicação das diretrizes da WPATH, assentes no auto-diagnóstico dos pacientes, mesmo que sejam menores desde que estejam acompanhados pelos pais ou sob a tutela da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ), como já tinha adiantado à SÁBADO, o gabinete de Rita Sá Machado.  

O Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, a unidade de medicina de género que funciona no hospital Júlio de Matos,  uma dos mais procuradas neste momento a nível nacional, acompanha os utentes "à luz da diversidade e não dos binómios feminino-masculino e mulher/homem, até então prevalentes", assume-se em Acta Médica, assinada por toda a equipa, incluindo o psiquiatra sexólogo Marco Gonçalves e o endocrinologista Carlos Fernandes.  

No documento, defende-se "que cada percurso é individual e autodeterminado" e que se "deve encaminhar para cuidados afirmativos de género, quando essa for a vontade da pessoa".  

O papel do clínico "é, assim, comunicar de forma empática, informada e inclusiva, identificar as necessidades individuais da pessoa e oferecer cuidados médicos adequados", num processo rápido de afirmação, defende ainda esta equipa do Júlio de Matos (incluindo psicólogos e enfermeiros desta unidade), realçando que "o impacto do acesso atempado a cuidados de saúde afirmativos de género é bem conhecido, reduzindo de forma significativa os níveis de sofrimento psicológico".  

Uma opinião não partilhada por um grupo de pais, detrans e profissionais de diversas áreas que resolveram criar o Juventude em Transição, integrado na rede da Genspect, organização presente em 25 países e que apela a uma intervenção menos medicalizada e mais focada na psicoterapia para estes jovens em questionamento identitário. 

As coincidências das histórias partilhadas pelas respetivas filhas de Sara, Maria, Luís e Tiago, alguns dos pais do JeT, comuns, aliás, às largas milhares que ouvem nas plataformas da rede Genspect, um pouco por todo o mundo, não lhes deixam dúvidas de que esta abordagem assente na auto-determinação de género é tragicamente falível.  

As quatro meninas jamais tinham sentido disforia de género durante a sua existência, todas se iniciaram no universo trans durante os confinamentos da pandemia - uma altura em que passaram tempos infindáveis mergulhadas no submundo online e no TikTok - e todas passaram por uma transição social feita pela escola, sem o consentimento dos pais e sem que algum diagnóstico clínico tivesse sido feito, nessa altura. Todas elas apresentavam também uma alguma patologia associada, seja transtorno do Espectro do Autismo, Défice de Hiperatividade, ovários policísticos, depressão profunda ou dismorfia corporal, comorbilidades que psiquiatras e psicólogos do SNS e do privado, ignoraram. Nenhuma, segundo os pais, melhorou a sua disposição mental, com os processos de transição. 

O psicólogo Abel Matos Santos concorda e não tem receio de dizer que a maior parte desta nova vaga de "miúdos que dizem ser  transexuais, não são nada", acrescentando que os ativistas "passaram o termo transexual para transgénero para terem um chapéu maior", onde tudo cabe.

E tem histórias várias. Como a de um jovem de 16 anos que lhe apareceu, desesperado, na consulta com a mãe, "a dizer que queria mudar de sexo, que queria ser uma rapariga e que não se sentia bem no seu corpo". Isto, nos tempos em que ainda se exigiam relatórios de equipas multidisciplinares de dois centros diferentes. "No Júlio de Matos disseram que ele tinha condições para iniciar o tratamento para mudança de sexo e eu sempre achei que não. Na altura trabalhava com o professor Daniel Sampaio, que era o meu diretor e ele apoiou a minha decisão. O miúdo não foi operado. Desapareceu da consulta e passado um ano e meio, reapareceu, já com um aspeto diferente, de rapaz, com cabelo cortado, acompanhado da namorada. Foi lá agradecer o facto de eu nunca ter assinado o papel que o levaria à cirurgia", conta. E remata: "Se eu tivesse assinado o papel, tinha desgraçado a vida àquele rapaz".   

No seu comunicado, o SALL reitera que esta legislação agora em reavaliação "é extremamente perigosa e injusta", "acompanha os estudos internacionais sobre as pessoas submetidas a estes tratamentos irreversíveis em prol da ‘autodeterminação de género’ e dispõe-se a acompanhar qualquer vítima destes procedimentos".

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