Sábado – Pense por si

O “gangue do multibanco”

No início da década de 1990, um trio criminoso dedicou-se a raptar, torturar, roubar e violar mulheres desprevenidas que “caçava” nas noites de Lisboa. Ana Cristina foi a única vítima mortal.

A PJ começara a ficar alarmada em meados de 1991. O caso ainda não fazia manchetes, mas nos gabinetes da Avenida José Malhoa, quartel-general da Direção Central de Combate ao Banditismo (DCCB) – hoje Unidade Nacional Contraterrorismo (UNCT) –, os inspetores andavam com a cabeça à roda com um número inusitado de raptos e roubos, nas noites da capital, que tinham as mulheres como alvo.

'Gangue do multibanco' atuava em Lisboa
"Gangue do multibanco" atuava em Lisboa Ruben Sarmento

O País só despertou para o tema quando o sorriso de Ana Cristina Martins, uma jovem de 25 anos, loira e de olhos azuis, entrou pela casa dos portugueses, depois de desaparecer sem deixar rasto a 22 de agosto de 1992.

A PJ precisou de dois anos e meio para desvendar o mistério: Ana Cristina fora assassinada por um grupo criminoso que seria batizado por “gangue do multibanco” – formado por Rui Gomes, o líder, pela sua mulher, Ana Maria Lopes, e pelo seu cúmplice, Eduardo Cardoso.

Neste período, pelo menos mais 12 mulheres foram raptadas e roubadas; muitas delas, espancadas e violadas em cativeiro.

Uma moradia na Caparica Rui Jorge Oliveira Gomes seria descrito como “frio” e “cruel”, mas, naquela época, quem com ele se cruzava via apenas alguém de caráter reservado, discreto por entre a vizinhança de Casalinho da Rosa, um lugar próximo das praias da Caparica, em Almada. Rui era casado com Ana Maria. O casal tinha dois filhos e vivia numa moradia de aspeto familiar e decorada com azulejos azuis e brancos. A garagem ao lado parecia servir de “oficina de automóveis”, um negócio “à porta fechada”, mas que não levantava suspeitas (era tudo aparentemente comum). No entanto, a fachada de normalidade escondia outras verdades: Rui liderava um esquema de furto de automóveis, que depois eram viciados e reintroduzidos no mercado com documentos falsificados. Os lucros pagavam os serviços de cinco homens e quatro mulheres. A maioria destes membros desconheciam, porém, o coração perverso do líder deste esquema.

O indivíduo “verdadeiramente mau”, como descreveria, à SÁBADO, um inspetor da PJ que acompanhou o caso, veio a revelar traços de ser “psicopata” e “sádico”. Ainda assim, encontrou quem alinhasse ao seu lado.

Com o apoio do seu “núcleo duro” – a mulher Ana Maria e o braço direito Eduardo Cardoso –, Rui passou a raptar e a roubar a coberto das noites de Lisboa. Os alvos escolhidos eram mulheres, abordadas de surpresa, quando estavam sozinhas, e se preparavam para entrar nas suas viaturas, na rua ou em parques de estacionamento de hipermercados. O grupo gostava de atacar nos bairros de Benfica e Telheiras e chegou a visar carros parados nos semáforos vermelhos.

O modus operandi era sempre igual: um dos homens ameaçava a vítima com uma arma branca, levava-a para o banco de trás e, de seguida, colocava-a no porta-bagagens (os assaltantes só escolhiam modelos que permitissem acesso à mala pelo interior). O trio participava ativamente nestas operações. As vítimas eram levadas para a Margem Sul no próprio carro; Ana Maria pegava muitas vezes no volante.

Manietadas pela força masculina, atadas com peças de roupa, confinadas ao escuro, desorientadas e em pânico, as mulheres eram levadas para um cativeiro que poderia durar dias ou semanas. Nesse período, eram mantidas no interior de uma carrinha estacionada na garagem da moradia em Casalinho da Rosa, que tinha todos os vidros tapados por páginas de jornais, impedindo de identificar ou localizar o espaço.

O pior vinha depois. Rui queria “sacar” os códigos dos cartões multibanco, com os quais fazia levantamentos diários até que o saldo estivesse esgotado; mas isso não lhe parecia chegar. Para manter as presas indefesas, Ana Maria servia-lhes diariamente um cocktail de leite e Lorenin, um medicamento que mantinha as mulheres semiadormecidas.

Dominado pela perversidade, Rui, então na casa dos 30, parece que começava a “divertir-se” com aquele cenário, espancando e violando violentamente as mulheres – os atos eram praticados sob o mesmo teto que partilhava com a mulher e os seus filhos.

Quando a conta bancária da vítima secava, o trio descartava a mulher num local ermo que não pudesse conduzi-la ao local dos crimes. O pesadelo terminava, mas o trauma persistia.

O caso de Ana Cristina

Ana Cristina não foi a primeira, mas seria a única vítima mortal do “gangue do multibanco”. A jovem passava férias em família no parque de campismo da Costa. Ao final da tarde do dia 22 de agosto de 1992, um sábado, a rapariga despediu-se dos pais para ir ter com o namorado a Lisboa. Mas nunca chegou ao destino. Evaporou-se, pura e simplesmente. Durante dois anos e meio, o mistério permaneceu sem solução. Com o tempo, as teses multiplicaram-se: havia suspeitas do envolvimento de uma rede de tráfico humano; uma fuga voluntária para a região de Málaga, Sul de Espanha, onde Ana Cristina teria ido à procura de uma suposta paixão nascida no verão anterior; havia até quem garantisse tê-la visto com os seus próprios olhos. Os seus pais tornaram-se rostos conhecidos da televisão. O retrato de Ana Cristina tornou-se conhecido por portugueses de todas as idades.

A verdade chegou, dolorosa. Ana Cristina tinha caído na teia de Rui, Ana Maria e Eduardo. O seu jipe serviu de isco. Soube-se, mais tarde, que Rui já tinha comprador para aquele modelo, estava sinalizado desde que o vira à porta do campismo. Naquele dia, o líder do gangue terá feito tudo sozinho. Ana Cristina acabara de abrir a porta do veículo, quando sentiu a lâmina da navalha encostada ao pescoço. O homem ordenou que entrasse para o banco de trás e cobriu-a com uma toalha de praia. As constantes ameaças paralisaram-na durante a viagem até Casalinho da Rosa (que deve ter demorado cerca de 10 minutos). Quando Rui chegou a casa, a mulher, Ana Maria, aguardava-o para o ajudar a carregar a nova “presa” para a carrinha-jaula.

O destino de Ana Cristina, esse, ficaria traçado na cena seguinte, devido a uma coincidência: quando os raptores destaparam Ana Cristina, a jovem piscou muito os olhos para se habituar à luz, mas assim que os seus olhos se encontraram com os dos raptores, a jovem reconheceu imediatamente Ana Maria, uma ex-vizinha da Rua Maria Pia, em Lisboa. A jovem sugeriu isso mesmo ao casal – mas o gesto de coragem ser-lhe-ia fatal.

Nos dias seguintes, Ana Cristina enfrentou a loucura de Rui, convencido que teria de matá-la. A vítima seria espancada, drogada e violada repetidamente. Os criminosos conseguiram arrancar-lhe 70 contos (350 euros na moeda atual), antes de a tentarem sufocar com fios elétricos e de a esfaquearem no peito. Depois, enterraram Ana Cristina na Lagoa de Albufeira, Sesimbra, a 30 quilómetros de distância, quando o seu coração ainda batia. Nessa semana, um dos homens do grupo regressou à sepultura para a cobrir de cimento e lubrificante automóvel que disfarçava o odor a cadáver.

A tragédia não incomodou ninguém. O gangue continuou a somar vítimas, sem alterações.

O fim do mal

Numa noite de “caça” em Telheiras, o “gangue do multibanco” apanhou uma mulher desprevenida no parque de estacionamento do antigo Carrefour. O grupo seguiu o mesmo guião: só que, desta vez, a mulher manteve-se desperta dentro da mala. Pelo ruído, percebeu que estava a atravessar a ponte 25 de Abril; e contabilizou mentalmente a distância percorrida por estrada.

Assim que foi libertada, foi a correr à PJ, dando todas as informações de que se pôde lembrar. As pistas conduziram as autoridades à “casa dos horrores” de Casalinho da Rosa. E todos os membros do gangue (nove no total) seriam presos. A maioria deles dedicava-se apenas ao roubo e viciação de automóveis e não sabiam das atrocidades do trio. Ficariam tão chocados como o resto do país.

A crueldade de Rui e Ana Maria deixou o país boquiaberto. O casal ousara usar nos dedos os anéis roubados às vítimas; a mulher usava o de Ana Cristina.

Durante o atribulado julgamento (a revolta popular obrigou a especiais medidas de segurança), Rui e Eduardo acusaram-se mutuamente do homicídio. Ana Maria acabaria por revelar o local onde o corpo de Ana Cristina estava enterrado, confirmando o que se temia. Rui e Eduardo foram condenados a 20 anos de prisão (a pena máxima à época). Ana Maria a 18 anos. 

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