Quem decide as infraestruturas em Portugal não é o Ministério das ditas. Quem manda é a Mota-Engil.
Não se admire se daqui a uns anos encontrar o nosso dinâmico ministro das Infraestruturas, Miguel Pinto Luz, num próspero lugar na Administração da Mota-Engil. É um velho hábito: Jorge Coelho, ministro do Equipamento Social de António Guterres, veio depois a ser administrador da Mota-Engil. O seu sucessor no Governo de Durão Barroso, Luís Valente de Oliveira, também lá passou, tal como Luís Parreirão ou Paulo Pereira Coelho, secretários de Estado do PS e do PSD. Da atual safra estão lá Paulo Portas e Francisco Seixas da Costa. A Mota-Engil gosta de recrutar na política. E a política gosta de agradar à Mota-Engil.
Só assim se percebe a complacência com que o Governo assiste à forma como a empresa, líder do consórcio vencedor da primeira fase do TGV Porto-Lisboa, se dedica agora a redesenhar o caderno de encargos que o Estado lhe atribuiu, alterando por completo a natureza do projeto. No fim de julho, foi assinado o contrato de concessão do primeiro troço da nova linha de alta velocidade, entre o Porto e Oiã, com o consórcio liderado pela Mota-Engil e que inclui também as construtoras Teixeira Duarte, Alves Ribeiro, Casais, Conduril e Gabriel Couto. Cabia-lhes avançar com os projetos finais, construir o troço contratado e fazer a gestão da infraestrutura durante os próximos 30 anos.
Ganho o contrato de mais de 1,6 mil milhões de euros, o consórcio dedica-se agora, não a cumpri-lo, mas a alterá-lo. Afinal, a estação de alta velocidade de Gaia já não fica no centro, em Santo Ovídio, onde seria servida por duas linhas de Metro com ligação direta às zonas central e ocidental do Porto. Ficará antes numa área de reserva agrícola e ecológica a dois quilómetros, em Vilar do Paraíso, onde não há Metro nem transportes públicos, e que obriga a expropriar 185 casas e 45 instalações industriais e empresariais. Afinal, a ponte rodoferroviária sobre o Douro passa a ser duas pontes, em vez de uma. Afinal, a nova estação de Campanhã, no Porto, prevista como um edifício em ponte sobre as linhas e plataformas da gare, passa a ser uma mera passagem superior pedonal.
A lógica é simples: depois de apresentar a única proposta considerada válida no concurso, e de se ter queixado do preço baixo, a Mota-Engil trata olimpicamente de reescrever o caderno de encargos. Contratada para construir uma vivenda, anuncia que vai fazer uma casota de cão. Sai-lhe mais barato. Manda quem pode, obedece quem deve.
É verdade que o ministro Pinto Luz prometeu há dias, numa resposta ao Parlamento, que “qualquer alteração só poderá ser adotada se demonstrar vantagens para o interesse público” e passar na avaliação jurídica, financeira e ambiental. Mas a própria IP, numa apresentação pública do projeto, na semana passada, já se mostrava claramente enamorada pelos méritos da nova proposta. Pode o leitor apostar 1.661 milhões de euros em como o Governo vai fazer a vontade à Mota-Engil. Mesmo contra as opiniões dos peritos, que apontam o absurdo de mudar a estação de Gaia, lá se encontrarão as razões técnicas e jurídicas para obedecer ao concessionário. Depois de permitir que, desde julho, o consórcio se entretivesse a redesenhar o projeto, em vez de implementá-lo, não duvido que a urgência de não deixar derrapar prazos seja invocada como razão para fazer tábua rasa do caderno de encargos.
Tudo isto será amaciado por argumentos de autoridade de gente reconhecida. O arquiteto Souto Moura, Prémio Pritzker e conhecido mercenário da lapiseira, contratado pelo consórcio para desenhar as estações, já apareceu a dizer que uma estação subterrânea é um grande perigo e que melhor será pô-la no meio do nada porque, assim como assim, chega-se bem ao comboio de carro. Aqui, como na Operação Babel (também em Gaia), Souto Moura não vende só arquitetura, vende legitimidade respeitável a negociatas esconsas.
Já vimos este filme. A alteração do caderno de encargos depois da obra adjudicada – uma óbvia fraude a um processo transparente e concorrido – é um enorme favor do Estado à Mota-Engil. O concurso para o segundo troço da Alta Velocidade, entre Oiã e Soure, já foi anulado por falta de comparência. Há de vir um novo, com o preço revisto em alta, e o mesmo consórcio a afiar o dente. O guião é o mesmo: uma vez capturado o contrato, faz-se o que se quiser.
A saga da Alta Velocidade, que anuncia uma relação próspera e promíscua entre Estado e concessionários para os próximos 30 anos, surge precisamente quando se aproxima o fim das PPP rodoviárias que sangraram o orçamento público, em benefício da mesma Mota-Engil e outros concessionários, nos últimos 30 anos. A mesma captura renova-se e estende-se. Há três décadas, o Estado português deu aos privados autorização para irem roubar para a estrada. Completado esse longo e feliz repasto, vão agora roubar para o carril. Nunca nos livraremos deles
Legitimada a sua culpa, estará Sócrates tranquilo para, se for preciso, fugir do país e instalar-se num Emirado (onde poderá ser vizinho de Isabel dos Santos, outra injustiçada foragida) ou no Brasil, onde o amigo Lula é sensível a teses de cabalas judiciais.
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Num debate político talvez valesse a pena fazer uma análise de quem tem razão, quem conhece melhor o país, quem apresenta soluções exequíveis no âmbito dos poderes presidenciais, quem fala dos aspectos éticos da política sem ser apenas no plano jurídico.
De qualquer maneira, os humanos, hoje, no século XXI, são já um mero detalhe em cima da Terra. Hoje há bilionários, máquinas e os anexos – os biliões de humanos que por aqui andam.