Num dia de intenso trabalho, roubo um título a um artigo do jornal El País, publicado no dia 22 de Março. Para me distrair entre os muitos diretos que fiz hoje para a televisão, vou lendo jornais atrasados. Alguns, já razoavelmente atrasados. Chamou-me a atenção este título. O El País faz neste artigo uma coisa que, por cá, ninguém está a fazer, com a honrosa excepção do Correio da Manhã: resgatar a biografia dos mortos. Mostrar a cara e um pouco da história de vida de cada um deles. Da Carmen Parra, 59 anos, que adorava pregões e não resistia a doces. Do Alejandro Ruiz, 86 anos, que era uma enciclopédia de anedotas, de Victoriano Campos, 94 anos, que atravessou a terrível história do século XX, a guerra civil espanhola, a II Guerra Mundial, o franquismo e a fome dos piores desses tempos. Não é voyeurismo, é mesmo dar rostos a uma tragédia que tendemos a tratar com números, gráficos, estudos e relatórios.
Mais uma vez, é preciso mostrar-lhes a cara e as histórias para que não fiquem uma abstracção de números na nossa memória. Para que seja resgatada a sua dimensão humana e não sejam apenas ‘idosos’ ou ‘vítimas’ e uma soma trágica de números. Eles são mesmo as vidas apagadas pela pandemia, como diz El País, na sua simplicidade poética de titular. Devemos-lhe isso, para que esta pandemia não fique para a história conhecida por uma cruel simplificação de números e chavões burocrático-científicos.
O ventilador de Eanes
O antigo Presidente da República, Ramalho Eanes, deu uma entrevista à RTP, em que defendeu que os velhos, como ele, devem dar o seu ventilador a outros mais novos, um "homem com filhos", como disse. A frase foi muito aplaudida mas, eu, pelo meu lado, com o devido respeito ao general, não concordo. O dilema não deve estar em cada um de nós, muito menos nos velhos. O dilema não devia sequer existir. É certo que estamos perante uma pandemia avassaladora para que ninguém está preparado e que os hospitais não têm capacidade para tratar todos. Mas é ISSO QUE ESTÁ MAL!. O que está mal é uma sociedade que gasta tanto dinheiro mal gasto, que tem níveis de corrupção brutais, cujo dinheiro é roubado ao investimento na saúde, na educação e em outros campos essenciais, que não é capaz de tratar dos seus. O que está mal é não termos colectivamente exigido mais equipamento e mais investimento no Serviço Nacional de Saúde. Não o termos defendido com o nosso voto e todos os outros instrumentos democráticos de pressão social. O que está mal é andarmos por aqui entregando a outros a gestão de questões tão essenciais da nossa vida como a saúde e a educação. Deixando-nos empurrar para a exploração dos seguros de saúde e das mensalidades no ensino privado.
O que está mal é deixar que se tenha de chegar a esse ponto, de entregar a uma decisão pragmática de um profissional de saúde, aquilo a que os católicos chamam o poder de Deus: tirar a vida de um para dar a outro. Compreendo o general Eanes e a sua ética militar mas não concordo com uma ideia que mais não é do que criar uma espécie de eutanásia selectiva, em função da idade, que estimula os preconceitos sociais contra os velhos. É que, como já aqui escrevi, nós já os tratamos mal, abandonando-os em hospitais e lares. Agora vamos pedir-lhes que sejam uns bravos que se ofereçam para morrer? O homem com filhos, na expressão de Eanes, deve ser salvo, porventura até pela generosidade de outro homem em condição terminal, mas nunca como se isso fosse uma espécie de imperativo ético. Entrar por aí é entrar num caminho muito perigoso, que nunca se sabe onde acaba.
Valha-nos a Ephemera
A associação Ephemera, projecto criado e dinamizado por José Pacheco Pereira, está já a recolher materiais de todo o tipo que documentem esta crise do coronavírus. E também a divulgar um diário de documentos raros, de imagens preciosas, que são uma das grandes sementeiras da memória colectiva. Aqui ficam algumas, num gesto agradecido a quem luta para que daqui a 100 anos alguém ainda possa dizer que hoje aconteceu isto ou aquilo em Portugal e no mundo.
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