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Covid-19: Pandemia desprotegeu jovens ex-acolhidos e em acolhimento

20 de maio de 2020 às 20:40
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Plataforma de Apoio a Jovens Ex-Acolhidos está preocupada com aqueles estão ainda em acolhimento e com a falta de recursos humanos num momento de confinamento.

A Plataforma de Apoio a Jovens Ex-Acolhidos (PAJE) está preocupada com aqueles estão ainda em acolhimento e com a falta de recursos humanos num momento de confinamento devido à pandemia de covid-19, recebendo dezenas de pedidos de ajuda.

Quando atende o telefonema, depois de algumas tentativas sem sucesso, João Pedro Gaspar, que dirige a PAJE, explica o porquê da demora: a ocupar a linha esteve durante largos minutos um caso urgente de um jovem, que já esteve em situação de acolhimento, que está agora a viver com o pai, o qual "é tudo menos uma boa referência", o que pode levar a uma situação complicada para um jovem com dificuldades cognitivas, como a que há tempos resultou em autoflagelação e internamento no hospital Júlio de Matos.

"Estou a ver se consigo uma solução já para esta noite", explicou João Pedro Gaspar, sobre um caso que resume aquilo que é o trabalho e a intervenção diária da PAJE junto dos jovens ex-acolhidos que apoia.

A pandemia aumentou o fluxo de pedidos e são já dezenas nas últimas semanas, que chegam num tom de "quase desespero", de quem se vê sem emprego ou à beira de o perder, de quem não tem reservas, poupanças nem família que ajude e que agora vê na PAJE o último recurso e uma ajuda fundamental para encontrar um emprego ou pedir ajuda para preencher um formulário de candidatura a um apoio do Estado.

João Pedro Gaspar diz que a PAJE evita, e que os jovens ajudados sabem disso, "ser assistencialista" no apoio que presta. Neste momento, face ao período excecional que se atravessa e às dificuldades dos jovens, já se viu forçada a entregar apoio alimentar, algo que habitualmente não faz. A PAJE está também a apoiar dos jovens ex-acolhidos em situação de sem-abrigo.

As situações que chegam são geridas no momento, mas ao fim de um pouco mais de quatro anos de atividade a PAJE já tem "uma base de contactos" à qual recorre sobretudo para ajudar a encontrar emprego.

"Os empregos não se arranjam de um momento para o outro, mas falamos com duas ou três pessoas e se essas não conseguirem falam com mais duas ou três e um tempinho depois acabará por surgir uma oportunidade. Nem sempre é tão imediato, mas temos uma rede de contactos que vai dando resposta", disse João Pedro Gaspar.

Mas o que é transversal a todos os jovens acompanhados pela plataforma, disse João Pedro Gaspar, é a necessidade de apoio psicológico e emocional. Os laços que se criam com a equipa da PAJE ultrapassam o lado institucional e transformam-se em relações de amizade, com os jovens a telefonarem muitas vezes também apenas para contar como lhes corre a vida, para dizer que o emprego que encontraram está a correr bem e que podem ser promovidos, que têm um novo namorado ou namorada, que engravidaram, que compraram um carro novo e toda uma panóplia de situações corriqueiras que se partilham com família e amigos e que estes jovens apenas se sentem confiantes para partilhar com a equipa da PAJE.

Em tempo de pandemia, ligam mais "para combater a solidão e ansiedade, porque ficam mais ansiosos com esta situação e precisam de alguém que lhes dê algum conforto e alguma serenidade", referiu João Pedro Gaspar.

Investigador da Universidade de Coimbra e professor universitário em diversas instituições do país, João Pedro Gaspar diz estar agora a "1000%" na PAJE, depois de uma tese de doutoramento dedicada ao pós-acolhimento, algo que ainda não é alvo de estatísticas oficiais, mas que a PAJE acompanha com os seus próprios dados, que vai recolhendo do trabalho diário e que contabilizam, entre outros aspetos, tentativas de suicídio, situações de reclusão e casos de sem-abrigo. Da tese resultaram conclusões que quis aplicar em trabalho concreto, sendo essa razão do aparecimento da plataforma.

Mas é do percurso profissional anterior, de 20 anos a lidar com jovens em acolhimento, que surgem as preocupações relacionadas com outro eixo de intervenção da PAJE, os que ainda estão em casas de acolhimento ou em situação de risco ou perigo.

Também João Pedro Gaspar está preocupada com a falta de um olhar da sociedade, nomeadamente da comunidade escolar, sobre situações de crianças e jovens em risco, que devido ao confinamento possam ter passado a uma situação de perigo, sem ninguém para o sinalizar ou atuar.

"Tememos que o que aconteça na casa fique lá, que as situações de risco passem a perigo", disse.

A outra preocupação é com as crianças e jovens em casas de acolhimento e com a falta de recursos humanos para as acompanhar numa altura em que os técnicos podem ter que ficar em casa a prestar apoio aos próprios filhos e em que o confinamento encerrou escolas e obrigou estes jovens a permanecer 24 horas em casa, tornando insuficientes os recursos humanos normalmente dimensionados para um acompanhamento que pressupõe que há um período em que crianças e jovens estão na escola.

"Há menos recursos humanos e isso também é preocupante, para além do cansaço dos cuidadores e da saturação também dos jovens, que por vezes leva a fugas e a consequência da fuga. Quando chega tem que ficar em isolamento, tem que ser testado, por vezes vem mesmo infetado, como já aconteceu", referiu.

Há também a questão da tensão inerente à permanência ininterrupta numa casa que pode acolher dezenas de jovens numa fase em que não há saídas para visitar famílias ou passar fins de semana e férias com elas. As videochamadas ajudam a reduzir tensões, mas não resolvem os problemas todos. E uma situação de tensão pode gerar uma decisão precipitada, que pode gerar uma situação sem retorno. Para decisões precipitadas tomadas num contexto excecional João Pedro Gaspar pede também uma "análise excecional", que permita reverter decisões mal ponderadas.

Dá o exemplo de uma jovem que no dia 25 de abril completou 18 anos e comunicou que pretendia abandonar a situação de acolhimento para ir viver com o namorado, uma decisão que "tem muito para correr mal", desde logo, porque "a porta do sistema de acolhimento não é de vai-e-vem".

As casas de acolhimento admitem a permanência de jovens até ao limite de idade de 25 anos, desde que estejam a estudar ou num percurso formativo. Se não estiverem a estudar podem ficar até aos 21. A partir dos 18, quando atingem a maioridade, podem decidir sair, e essa decisão não tem retorno.

"Pede-se flexibilidade aos técnicos nas casas para evitar decisões intempestivas e que podem levar a saídas precipitadas com resultados negativos. Temos jovens que acompanhámos que agora são reclusos", disse João Pedro Gaspar.

É para evitar casos que culminem em decisões intempestivas que a PAJE, que tem âmbito nacional, tem protocolos com casas de acolhimento em nove distritos, para trabalhar competências, autonomia funcional e, sobretudo, autonomia emocional junto destes jovens, que muitas vezes têm défices cognitivos.

Nas palavras de João Pedro Gaspar, não basta ensinar a fazer a cama, é preciso que percebam a importância de a fazer. E isso leva tempo, que a PAJE ocupa com passeios, muitas conversas, atividades lúdicas e outras estratégias para construir confiança que permitam chegar à construção de competências que levam à autonomia.

Um dos casos de sucesso é o de Éder, o jogador da seleção nacional transformado em herói no Europeu de Futebol de 2016, quando marcou o golo que resultou no primeiro título de campeão europeu para Portugal.

Portugal entrou no dia 03 de maio em situação de calamidade devido à pandemia, depois de três períodos consecutivos em estado de emergência desde 19 de março.

Esta nova fase de combate à covid-19 prevê o confinamento obrigatório para pessoas doentes e em vigilância ativa, o dever geral de recolhimento domiciliário e o uso obrigatório de máscaras ou viseiras em transportes públicos, serviços de atendimento ao público, escolas e estabelecimentos comerciais.

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