A carreira de Conceição Oliveira mostra o que custa construir uma Justiça capaz de confrontar os poderosos.
51 anos depois do 25 de Abril, o combate pela justiça continua a ser a grande incógnita da democracia. No Estado Novo, o sistema judicial existia para impor uma ordem social em que “manda quem pode e obedece quem deve”. Os tribunais eram parte do aparelho repressivo e o sistema servia para manter a ordem pública, punir o crime violento e manter cada um no seu lugar. Os roubos – ou até os crimes sexuais – das elites eram tratados no recato dos gabinetes e silenciados pela censura.
O poder judicial democrático prometeu-nos a igualdade de todos perante a lei, e foi com a democracia que se codificaram seriamente os crimes de corrupção e no exercício de funções públicas. Mas manteve-se um pudor antigo em colocar os poderes ao alcance da Justiça. Até hoje, cada tentativa de afirmar um Ministério Público e tribunais independentes e atuantes provoca uma reação bem organizada de boa parte da classe política e do comentariado amestrado, que veem no escrutínio dos poderosos uma “judicialização da política” cujo único remédio, nessas doutas cabeças, seria a impunidade de quem manda.
Foi por isso longo o caminho que permitiu que, em Portugal, um ex-primeiro-ministro se sentasse no banco dos réus por dezenas de crimes de corrupção. Ou um grande banqueiro, “Dono Disto Tudo”, fosse responsabilizado pelos múltiplos crimes em que baseou o seu poder durante décadas. Processos que, se mostram uma Justiça por fim cega ao poder pessoal dos acusados, estão longe de garantir uma real igualdade perante a lei, ainda demasiado permeável a habilidades judiciais e manobras dilatórias ao serviço dos grandes arguidos. O caminho tem sido feito, mas tem sido lento e com altos custos.
É impossível não refletir sobre isto ao ouvir a notícia, pouco notada, da morte prematura da juíza Conceição Oliveira, na semana passada. A imprensa descreveu-a como a juíza dos processos mediáticos dos anos 1990 e início dos anos 2000, quando esteve colocada no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa. Foi ela quem mandou prender preventivamente João Vale e Azevedo, ex-presidente do Benfica, e quatro arguidos do caso Moderna – história antiga em que, a partir de uma Universidade privada, se teciam relações perigosas, mas profícuas, entre os poderes político e económico, envolvendo pivots conhecidos dessa porta giratória, como Paulo Portas. O caso Moderna levaria à demissão de Fernando Negrão como diretor da Polícia Judiciária, em conflito com o procurador-geral da República Cunha Rodrigues, por suspeitas de violação do segredo de justiça.
Nestes casos e noutros, em que a Justiça confrontava o poder, Conceição Oliveira não se amedrontou. Avaliou as provas e aplicou a lei. Não foi a primeira vez, nem a única, que a Justiça teve essa coragem, felizmente. Mas a juíza fez mais do que isso. Foi das poucas pessoas na magistratura (ainda hoje) que assumiu com naturalidade a responsabilidade de prestar contas e de intervir no debate público, partilhando a sua experiência e conhecimento, em nome de uma justiça democrática, eficiente e eficaz. Deu entrevistas, denunciou disfunções, era livre. Pagou por isso com as mil penas que Portugal reserva à coragem e à frontalidade. Foi alvo de ameaças de morte, andou com segurança pessoal. O Conselho Superior da Magistratura (CSM) moveu-lhe um inquérito disciplinar por entrevistas em que criticara a colocação de juízes e denunciara “lobbies” na magistratura.
Mais tarde, diagnosticada com doença bipolar, viu a Caixa Geral de Aposentações negar-lhe a reforma por invalidez, num marco da indiferença demolidora com que o Estado tantas vezes trata os cidadãos. Acabou por se afastar dos holofotes e dos tribunais, arredando-se do debate público que tanto precisava, e continua a precisar, de vozes corajosas, sem medo de confrontar os poderes e afrontar as inércias. A história do apagamento profissional e cívico de Conceição Oliveira lembra-nos como as instituições em Portugal não perdoam a quem rompe com consensos cortesãos e não se comove com arguidos poderosos. Uma lição que fazemos bem em manter viva, neste tempo em que grandes advogados e pequenos políticos assinam manifestos por um poder judicial que reinstitua a velha hierarquia do Estado Novo, em que manda quem pode, obedece quem deve e em que os juízes são o braço punitivo do regime, em vez da mão segura da justiça.
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O descontentamento que se vive dentro da Polícia de Segurança Pública resulta de décadas de acumulação de fragilidades estruturais: salários de entrada pouco acima do mínimo nacional, suplementos que não refletem o risco real da função, instalações degradadas e falta de meios operacionais.