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Buscas em Oeiras. Os 466 mil euros que se perderam em Moçambique e outras histórias

Artigo da SÁBADO em 2023 relatava estranhos negócios, contratos e transferências de dinheiro. Ministério Público entrou hoje na câmara.

A Câmara Municipal de Oeiras voltou a ser visitada pela Polícia Judiciária e desta vez o assunto é uma empresa municipal, a Municípia, gerida durante muitos anos por dois homens de confiança de Isaltino Morais, Fernando Trigo (presidente até 2023) e António Fernandes (diretor-geral). No essencial, este caso nasceu de um artigo daSÁBADOde março de 2023:"O trânsito de milhões entre Oeiras e Moçambique".

A Municípia é uma empresa pública criada em 1999 para fazer cartografia, e que atua no mercado concorrencial com as privadas. É detida por 62 câmaras, mas tem epicentro em Oeiras, onde fica a sede e cuja autarquia detém 59% do capital – por isso nomeia dois dos três membros do conselho de administração (incluindo o presidente).

Os problemas começaram quando a empresa obteve dois grandes contratos em Moçambique, em 2018 e 2019, junto de dois ministérios, um de €679 mil e outro de €3.965.000 (valores ao câmbio da altura).

Para os executar, a Municípia fez um consórcio com uma empresa local, porque, segundo disse António Fernandes no referido artigo da SÁBADOhavia dois problemas em Moçambique: só as empresas locais podiam ter contas em meticais (moeda local) e obter certificações técnicas. 

Na auditora externa que depois foi feita sobre esta empresa municipal e estes negócios, António Fernandes repetiu essencialmente os mesmos argumentos: "Por se tratar de pagamentos em meticais, os mesmos tinham de ser efetuados para uma conta bancária em Moçambique; A legislação moçambicana não permite que uma entidade não residente, como a Municípia, seja titular de uma conta bancária em meticais num banco em Moçambique".

Assim, os pagamentos dos contratos em Moçambique iam para uma conta bancária em nome da empresa moçambicana com quem a Municípia fez o consórcio.

Os auditores ressalvam que não tinha de ser necessariamente assim: "Em Moçambique apenas em circunstâncias excecionais é permitido que uma entidade não residente possa abrir uma conta bancária em meticais num banco em Moçambique. A exceção prevê que, para que tal seja possível, tem de haver um justificativo de rendimento local, nomeadamente um contrato aprovado pelas autoridades locais competentes ou uma declaração do Ministério de tutela local autorizando a atividade em Moçambique. Assim sendo, não se deve excluir a possibilidade da Municípia poder ter solicitado a abertura de uma conta bancária num banco moçambicano, ao abrigo do contrato celebrado."

Em resumo, teria bastado à empresa municipal portuguesa invocar os contratos com o Estado moçambicano. Mas, como se disse, quem ficou a receber o dinheiro dos contratos foi a tal empresa local com quem a Municípia fez o consórcio.

O sócio moçambicano

Mas não era bem uma empresa local. Chamava-se Municípia MZ e tinha sido criada em 2014 por um arquiteto português chamado José Alberto Charrua, que era amigo do diretor-geral da Municípia, António Fernandes. À data destes contratos (e do consórcio), Charrua já não era o dono único da empresa. Tinha passado 51% da quota a um moçambicano chamado Edson Borges, que por sua vez era sócio de uma empresa em Moçambique, a Make Up House, com o mesmo António Fernandes.

A Make Up House era supostamente um cabeleireiro, mas (segundo disse António Fernandes no referido artigo da SÁBADO) "foi uma coisa que nunca funcionou".

Quanto a Edson Borges, e segundo a auditora externa, "interagiu pela primeira vez com a Municípia em data indeterminada (presumivelmente em 2007 ou pouco depois), tendo prestado apoio logístico aos técnicos da Municípia no âmbito de uma deslocação de prospeção comercial à Feira Internacional de Maputo; desde então, foi prestando de forma recorrente apoio de diversa natureza à Municípia, no agendamento de reuniões de prospeção comercial e em matérias de apoio logístico".

Os contratos começaram a ser executados, mas o Estado moçambicano começou a atrasar-se nos pagamentos, apesar de os trabalhos decorreram no terreno. Segundo o relatório de contas da Municípia, em 2019 só receberam 30% do cliente. A empresa escreveu que a sua parceira moçambicana (Municípia MZ) "entrou em rutura de tesouraria em diversas situações, o que originou a impossibilidade de usar a sua conta bancária".

A Municípia alega que teve necessidade de transferir dinheiro para Moçambique para pagar contas. A situação continuou em 2020 e 2021. Nesse relatório de 2019, era dito à página 79: "A Municípia [efetuou] transferências de adiantamento para o gerente da sociedade [Edson Borges], devidamente registadas." Tinham sido €661.145. Em 2020, as transferências totalizavam já €781.880, e em 2021 chegaram a €1.098.592.

Na auditoria externa, e na fase de contraditório, a Municípia passou a alegar que "não se vislumbram razões para a invocação de que a Municípia MZ teria entrado em rutura financeira". Também invocou que é "objetivamente falsa" a afirmação de que houve transferências para Edson Borges.

Os auditores recordaram o que Municípia escreveu nos seus relatórios de contas no passado e, no caso de Edson Borges, "foram disponibilizados pela Municípia documentos que demonstram terem existido transferências para duas contas bancárias de Edson Borges no montante de €31.200 em adição a um número elevado de transferências de fundos através de serviços de envio de dinheiro - Western Union ou Moneygram para Edson Borges (no montante de €86.587,79)".

Embora os auditores admitam esta tipo de pagamentos e transferências, "atentos os motivos invocados para a sua realização, bem como a responsabilidade solidária estabelecida no âmbito dos respetivos concursos públicos e contratualmente assumida pelas consorciadas perante as entidades adjudicante", levantam no entanto alguns problemas neste fluxo de dinheiro, que não parece estar concluído. Ou seja, há dinheiro que não regressou à origem.

Diz a auditoria que "não foi possível comprovar no extrato contabilístico das contas bancárias o recebimento do montante €76.160,59 relativo à devolução pela Municípia MZ de remunerações pagas pela Municípia". Mais ainda, "de acordo com os registos contabilísticos da Municípia", esta tem a receber da Municípia MZ, à data do relatório (junho de 2024), "um saldo de €466.672,21".

Assim, "a Municípia MZ não conseguiu reembolsar a totalidade dos adiantamentos à Municípia; caso não reembolse o saldo de €466.672,21 a Municípia deverá reconhecer uma imparidade". Os auditores dizem ainda que "a Municípia deveria ter realizado uma análise de risco financeira e implementar ações de mitigação relativamente à incapacidade da Municípia MZ fazer face às suas obrigações dentro do consórcio". 

Como resumiu a este propósito António Perez Metelo, ex-jornalista, deputado municipal em Oeiras pela Coligação Evoluir Oeiras (Livre, BE e Volt), "uma imparidade é quando se reconhece que a dívida é incobrável" (ver sessão da Assembleia Municipal de Oeiras de 23 de julho de 2024, onde se discutiu a auditoria, a partir dos 1'10''50).

Numa reunião do executivo de 3 de julho de 2024, onde a auditoria foi falada, Duarte Mata (que substituiu Carla Castelo nessa reunião) referiu que "é bastante relevante em que a Municípia MZ não conseguiu reembolsar até à atualidade os adiantamentos da Municípia, no valor de quase meio milhão de euros, e portanto, há dinheiro que vai daqui e que, em último caso, quem o coloca na percentagem correspondente à participação são os munícipes de Oeiras, que depois vão cobrir as falhas da empresa se houver imparidades mais à frente".

A esse propósito, refira-se que as empresas municipais não podem apresentar resultados negativos, o que obriga os acionistas a cobrir qualquer défice. Em 2020, por exemplo, no auge dos negócios em Moçambique, a empresa apresentou um resultado líquido negativo de €1.596.118, o que obrigou os acionistas (ao abrigo da lei que regula as empresas municipais) a transferirem quase o mesmo valor para reequilibrar contas. Só a Câmara de Oeiras, e por ser a principal acionista, teve de injetar €867 mil.

A contestação

A questão dos fluxos financeiros entre a Municípia e a Municípia MZ, bem como o papel de António Fernandes, serão o principal foco dos procuradores do Ministério Público (fica por esclarecer para já por que é quer foram fazer buscas á Câmara de Oeiras, uma vez que não é lá a sede da Municípia).

O artigo da SÁBADO de 2023 aflorava outros assuntos, também abordados na auditoria externa, como a compra e venda de equipamento entre a Municípia e a Municípia MZ, ou o contrato de consultoria que António Fernandes fez, a título pessoal, com uma entidade pública moçambicana ao mesmo tempo que era funcionário da Municípia.

Isaltino Morais determinou no final de 2022 uma auditoria interna à Municípia (na altura, a SÁBADO já estava a fazer o referido artigo, que demorou vários meses devido à resistência da empresa em fornecer informação e documentos). Mais tarde, em março de 2023, a Coligação Evoluir Oeiras (Livre, BE e Volt) conseguiu que a auditoria fosse externa, ou seja, feita por uma entidade independente. 

"Foi também a Coligação Evoluir Oeiras que se bateu para que fosse feita uma auditoria externa à empresa, porque Isaltino Morais considerava que bastava uma auditoria interna. Estaremos atentos ao desenrolar da investigação judicial e aguardamos o seu desfecho antes de mais considerações", diz à SÁBADO Carla Castelo, vereadora da coligação, que recorda que a auditoria "foi uma novela".

A 6 de fevereiro de 2024. Mónica Albuquerque, deputada da Evoluir Oeiras, tinha feito um ponto de situação:"Já este ano, na Assembleia de 9 de Janeiro 2024, questionámos qual o ponto de situação da auditoria, tendo o Sr. presidente [Isaltino Morais] dito que estava em curso. Lamentavelmente omitiu por completo aos deputados que, nessa altura, já o relatório preliminar tinha sido chumbado pelo executivo em setembro/outubro por dificuldades de entendimento com o auditor. Também se preparam para o chumbar para que nada se venha a saber e com isto prolongar as dúvidas que pairam sobre a Empresa, os seus negócios, além da relação da Municipia com a CMO, que foi deliberadamente deixada de fora da auditoria, mesmo tendo sido pedida que fosse incluída?"

A deputada lembrou ainda o que dissera a diretora municipal Paula Saraiva na reunião anterior: "Gostava ainda de saber o que quer dizer esta frase da Dra. Paula Saraiva: 'Em relação ao relatório final não pagamos os outros cinquenta por cento enquanto não vier como deve de ser'. O que é um relatório 'como deve de ser'?"

O PS teve outro posicionamento, alinhado com Isaltino Morais (recorde-se que o partido está coligado no executivo). Por exemplo, em assembleia municipal, na reunião de 23 de julho, disse que a notícia da SÁBADO de 2023 era "um número político" que "atirou um manto de suspeição" sobre a empresa Municípia (ver intervenção da deputada Alexandra Tavares Moura a partir dos 1'40''35, onde refere ainda que "não há gestão danosa da empresa" e que a coligação Evoluir Oeiras e a o PSD "ajudaram a manchar o nome da empresa"). 

O PSD, embora esteja também coligado com Isaltino Morais no executivo (não vai sequer apresentar candidato em Oeiras nestas Autárquicas), não está necessariamente todo junto nesta questão. Por exemplo, a deputada Sónia Gonçalves tem sido especialmente crítica na questão da Municípia, como se pode ver na intervenção da deputada Sónia Gonçalves (1'09''55), que levantou uma série de questões. Por exemplo, "quem é Edson Borges", qual a sua experiência profissional e por que foi escolhido para parceiro de dois negócios de milhões em Moçambique.

Sónia Gonçalves, ouvida pela SÁBADO, a propósito destas buscas, diz que as mesmas "reforçam as preocupações" que já vinha a a "manifestar há muito": "O histórico da empresa revela fragilidades profundas em termos de gestão, planeamento e transparência — aspetos que foram amplamente destacados tanto na auditoria como nas intervenções que fiz, ao longo deste mandato, na Assembleia Municipal. A auditoria levantou várias questões que nunca foram cabalmente esclarecidas, desde a falta de controlos internos e formalização de decisões até à inexistência de documentos que sustentem determinados negócios, tanto a nível nacional como internacional. Esta realidade compromete a confiança na empresa e põe em causa a boa aplicação dos recursos públicos que nela são investidos. Além disso, a recente proposta para um contrato-programa entre o Município e a Municípia, no valor de €720.000, que previa um subsídio à exploração sem um plano de reestruturação sério, foi, a meu ver, um erro incompreensível que não resolve os problemas de fundo. Por isso, considero que o momento exige uma reflexão profunda e decisões corajosas sobre o futuro da empresa e a sua relação com o município.

Diz ainda a deputada municipal: "Em última instância, o que está em causa é a defesa do interesse público e o respeito pelos contribuintes. Mais do que nunca, a prioridade tem de ser a boa gestão e a transparência — e que se apurem responsabilidades, se necessário, para que situações como esta não se repitam. O presidente [Isaltino Morais] tem sido cúmplice deste desgoverno da empresa insistindo na sua continuidade mesmo quando está à vista de todos que a Municipia nada mais é do que um sorvedouro de dinheiros públicos".

Ouvido hoje pelos jornalistas, Isaltino Morais disse que "havendo algumas irregularidades formais, do ponto de vista substancial não havia qualquer ilegalidade" com a Municípia.

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