Sábado – Pense por si

Mónica Ferro
Mónica Ferro Diretora do escritório de Londres do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA)
03 de fevereiro de 2024 às 10:00

A sua voz, o seu futuro

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Edição de 5 a 11 de agosto

Não é possível construir um mundo com dignidade para todas as pessoas se continuarmos a deixar algumas para trás. E as mulheres estão entre as que com mais frequência são deixadas para trás.

O desafio deixa-me um pouco inquieta. Queria poder escrever sobre todas as causas em que acredito, sobre todas as questões que estão a interpelar e transformar as nossas sociedades, sobre todos os obstáculos que impedem as pessoas de realizar os seus direitos e escolhas. Mas não tenho, para isso, o tempo, o espaço ou a arte.

Talvez consiga trazer-vos algumas estórias de outras partes do mundo, apresentar-vos pessoas e soluções que vos possam inspirar, desafios que vos possam indignar e mobilizar. Prometo mostrar-vos o meu trabalho, o trabalho da minha organização e de quem ao nosso lado luta para construir um mundo com mais dignidade.

Será uma tentativa de mapear o estado das coisas, das coisas comuns, dos nossos direitos e aspirações, da nossa humanidade partilhada. E sempre com um apelo à ação.

Hoje mais de 200 milhões de mulheres e meninas são sobreviventes da prática de mutilação genital feminina. Só este ano estimamos que cerca de 4,4 milhões de meninas – mais de 12.000 por dia – estejam em risco de ser submetidas a esta prática.

A Mutilação Genital Feminina é uma violação grave dos direitos humanos, uma prática nefasta que consiste na manipulação dos órgãos genitais femininos sem qualquer justificação médica e que tem consequências dramáticas para a sua saúde física e mental, em alguns casos causando até a morte. Limitando o acesso a recursos e oportunidades e impedindo meninas e mulheres de realizar os seus direitos e potencial, e estando profundamente enraizada na desigualdade de género e em normas sociais discriminatórias, a MGF perpetua-as e aprofunda-as.

Embora hoje o risco seja menor – as meninas têm menos 30% de probabilidade de ser submetidas a MGF do que há 30 anos - a verdade é que o progresso tem de ser 10 vezes mais rápido se queremos cumprir a promessa de eliminar esta prática até 2030.

Sabemos o que resulta e o que tem de ser feito. O Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA) para o qual trabalho, co-lidera com a UNICEF o Programa Conjunto para a Eliminação da MGF, trabalhando em 17 países e promovendo ações globais de sensibilização para as consequências desta violação dos direitos humanos e paras as respostas que funcionam.

Precisamos de legislação, planos nacionais de ação, orçamentos, apostas na educação, formação de magistrados, forças de segurança e profissionais de saúde, de uma ação abrangente que involva todo o governo e outros atores fundamentais – líderes comunitários e religiosos que condenem a prática, personalidades que usem a sua voz para amplificar esta luta, como a embaixadora de boa vontade do UNFPA, Catarina Furtado -, homens e rapazes que trabalhem como agentes de mudança, de uma sociedade civil local empoderada e de organizações internacionais que promovam uma ação concertada.

E precisamos da voz e da agência das sobreviventes. A sua voz, o seu futuro é o tema da campanha deste ano em torno do dia 6 de fevereiro, o dia de tolerância zero para com a mutilação genital feminina.

Temos que garantir que tudo o que se faça para elas, por elas conta com a sua voz; que ampliamos e damos visibilidade às suas estórias e experiências para que se construa uma consciência global e que elas participem no desenho dos planos de prevenção; temos que investir nos movimentos liderados pelas sobreviventes com recursos adequados, construir espaços livres de qualquer estigma onde possam ter lugar diálogos com comunidades, escolas e plataformas online onde elas, e quem queira juntar-se à conversa, possam discutir e partilhar os seus pontos de vista.

É fundamental dar prioridade a serviços acessíveis, compreensivos e culturalmente aceitáveis para as sobreviventes de MGF e aumentar o seu poder e agencialidade através de programas de educação e de formação, e de empreendedorismo para que elas próprias possam reivindicar um mundo com zero casos de MGF até ao fim desta década.

E se não acelerarmos esforços, em 2030 teremos mais de 4,6 milhões de casos, um aumento que não nega os sucessos alcançados e reflete as tendências demográficas de alguns países com altas taxas de prevalência.

Não há tempo a perder. O UNFPA tem sido muito claro na exigência de aceleração e adoção de abordagens centradas nos direitos humanos e na mudança das normas sociais. Digo muitas vezes que quando trabalhamos com normas sociais a sua transformação parece um esforço avassalador - são as tais que determinam pertenças e aceitação. Mas a boa notícia é que estas normas são construídas e podem ser desconstruídas. E esta é uma prática que tem de ser desmontada, peça a peça.

Não é possível construir um mundo com dignidade para todas as pessoas se continuarmos a deixar algumas para trás. E as mulheres estão entre as que com mais frequência são deixadas para trás, ignoradas nas negociações, sem um lugar à mesa onde as decisões são tomadas.

As sobreviventes de MGF não podem ser deixadas para trás. São elas que nos podem guiar e mostrar o caminho para uma sociedade mais justa e mais inclusiva onde a mutilação genital feminina seja uma estória do passado, onde a dignidade, empatia e a humanidade partilhada sejam o estado das coisas e não apenas uma aspiração.

Já sabe qual vai ser o seu papel nesta caminhada?

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