Sábado – Pense por si

Mónica Ferro
Mónica Ferro Diretora do escritório de Londres do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA)
12 de março de 2024 às 10:45

Um mundo de direitos e escolhas

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Edição de 5 a 11 de agosto

Quando vemos para além dos números e nos focamos nos direitos, vemos um mundo de possibilidades, vemos um mundo em que cada pessoa realiza o seu potencial.

E hoje? Vamos falar de direitos e escolhas?

Deixem-me trazer para as vossas conversas e preocupações algum do dia a dia do Fundo das Nações Unidas para a População.

Podemos começar com o diagnóstico.

Entre 2000 e 2020, a mortalidade materna caiu cerca de 34%. Entre 1990 e 2021, o número de mulheres com acesso a métodos contraceptivos modernos duplicou. Desde o ano 2000 o número de partos nas raparigas entre os 15 e os 19 anos diminuiu um terço. Hoje há pelo menos 162 países que aprovaram leis sobre violência doméstica, enquanto que há 20 anos eram uns mero 45.

Contudo, a mortalidade materna mantém-se como uma crise global: a cada dois minutos uma mulher morre de causas preveníveis ligadas à gravidez, parto e pós parto, totalizando quase 300.000 mortes por ano. Mais de 250 milhões de mulheres querem planear a sua fertilidade e gravidezes e não têm acesso a contracepção moderna. E  uma mulher em cada três sofre uma qualquer forma de violência ao longo da sua vida.

A boa notícia? Neste pós dia internacional das mulheres? É  que o progresso é possível e que com o investimento certo e as políticas públicas adequadas, podemos inverter esta realidade e construir um mundo com mais dignidade para estas mulheres e meninas.

Há 30 anos o mundo reuniu-se no Cairo, na Conferência Internacional sobre População e  Desenvolvimento, e, por consenso, colocou as pessoas no centro do processo de desenvolvimento, operacionalizou e reconheceu a importância da realização dos direitos reprodutivos, reafirmou o direito ao planeamento familiar, a necessidade de dar voz às meninas, a eliminação da mutilação genital feminina, a ligação virtuosa entre população e desenvolvimento.

E são inegáveis os avanços registados, que devem ser celebrados porque, em simultâneo ajudam a desconstruir mitos e mostram que investir na igualdade de género, no empoderamento das mulheres, no seu direito de realizar a sua fertilidade desejada são investimentos produtivos e transformadores.

Nada empodera uma mulher e uma sociedade como investir na sua saúde sexual e reprodutiva e nos seus direitos. Poder escolher se quer constituir uma família e, escolhendo fazê-lo, poder decidir quantas crianças quer ter e o espaçamento entre cada gravidez é um pré-requisito para uma sociedade que aproveita o potencial de todas as pessoas que a constituem. Posto de outra forma, uma pessoa que não controla o que acontece no seu corpo, com o seu corpo, controla muito pouco da sua vida.

E às mulheres é-lhes negada essa autonomia corporal, são lhe erguidos obstáculos por ação e omissão que fazem com que a igualdade pareça uma miragem ou um ponto no horizonte que, teimosamente, se afasta à medida que para ele caminhamos.

Mais de 130 anos, diz o Fórum Económico Mundial, vai demorar a igualdade de género a ser atingida se não acelerarmos o progresso.

Graças a um esforço incansável e concertado, fomos desmantelando sistemas, normas e valores patriarcais e hoje a maternidade é uma experiência mais segura, as mulheres têm um maior controlo da sua fertilidade e resgatamos e protegemos milhões de mulheres e meninas de violências e práticas nocivas.

Contudo a promessa de autonomia corporal continua longínqua para milhões de mulheres e raparigas em situação de vulnerabilidade, em especial as que vivem em contextos de crises (humanitárias, climáticas, económicas) e foram excluídas do progresso.

Normas sociais profundamente enraizadas, incluindo todas as formas de discriminação, mantêm as condições nas quais mulheres e raparigas portadoras de deficiência, pertencentes a minorias étnicas ou raciais, ou membros da comunidade LGBTQIA+ estão impedidas de realizar a sua saúde e direitos sexuais e reprodutivos.

As mulheres e raparigas apanhadas em situações complexas de conflitos e desastres naturais estão expostas a um maior risco de disrupção dos serviços de planeamento familiar, mais vulneráveis à violência com base no género, casamentos forçados e precoces e mortalidade materna.

E apesar de sabermos o que tem que ser feito e de como esse investimento resulta, assistimos a tentativas concertadas, simplistas e populistas de concentrar a mulher na sua dimensão reprodutiva ao mesmo que bloqueiam discussões importantes sobre saúde menstrual, sobre fertilidade desejada versus fertilidade realizada, sobre autonomia corporal, sobre o direito de escolha. Mesmo conversas aparentemente benignas sobre políticas populacionais encerram a possibilidade de uma iminente violação da autonomia e dos direitos reprodutivos das mulheres, se não estiverem fortemente alicerçadas em direitos. Já afirmei vezes incontáveis, a fixação em números, em ótimos populacionais e a ligação demasiado simplista entre população e alterações climáticas fazem com que o problema percebido e a solução identificada tenham sempre a forma do corpo de uma mulher.

Quando vemos para além dos números e nos focamos nos direitos, vemos um mundo de possibilidades, vemos um mundo em que cada pessoa realiza o seu potencial.

É essa a mensagem do dia internacional das mulheres, um mundo de possibilidades.

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