A nossa incapacidade de distinguir a verdade da inverdade e a consequente formulação de juízos políticos ou económicos com base em perceções erróneas não é um efeito secundário chato mas necessário da liberdade de expressão. É mesmo um ataque à nossa liberdade de pensamento.
Sabia que há agoramais 150 mil portugueses sem médico de família do que no início de funções deste Governo? Aquilo que, noutros tempos, seria capa de jornal passou despercebido no recheio de uma notícia sobre mais uma Ministra que dá números enganadores. Foi a mesma semana em que a Ministra do Trabalho teve de reconhecer que deu o valor errado do aumento das pensões em 2025. Nessa mesma semana foi demitido o Secretário de Estado que deu valores errados ao Ministro da Educação sobre o número de alunos sem professor.
A manipulação estatística é, claro, uma prática tão antiga quanto a própria existência de indicadores estatísticos. Infelizmente é também bastante difundida, indo, no caso português, ao topo da hierarquia governamental. O Polígrafo confirmou o que há muito era denunciado pela oposição – Montenegro tem andado a enganar os portugueses sobre o número de pessoas a aguardar cirurgia oncológica. Neste caso, o Governo opta por agendar cirurgias para além do prazo normal para a sua marcação, reduzindo assim artificialmente o número de pessoas a aguardar uma resposta.
É evidente que estes erros, intencionais ou não, estão ainda a uma distância considerável das tropelias do CHEGA e de André Ventura que, não só mentem nas estatísticas que usam como também usam o grafismo de órgãos de comunicação social para dar credibilidade à mensagem que querem passar. Todavia, a sua pior influência estará na relativização dos "factos" na sociedade, onde cada um passa a ter "a sua verdade". O Ministro Adjunto, Castro Almeida, chegou mesmo a dizer numa entrevista à SIC Notícias, em que se debatia a lei dos solos e a crise da habitação, que "não lhe interessa nada a estatística".
Nalguns casos, a noção coletiva de verdade pulveriza-se perante a polarização política. Noutros, a mentira pode mesmo ganhar contornos de consenso público criado a partir de pressupostos falsos. Veja-se que, apesar de ter havido uma redução objetiva do número de crimes registados, há uma perceção crescente de insegurança a que todos os partidos têm tentado responder. Nalguns casos, até uma boa notícia como a redução da criminalidade numa cidade [no caso, Lisboa], tanto em geral como a grave e violenta, se pode tornar, para o seu Presidente de Câmara, numa má notícia.
A normalização da inverdade num contexto de saturação informativa faz com que a sociedade civil já não consiga censurar a sua difusão. É seguramente o caso com Donald Trump e as suas constantes diatribes mas, diga-se, também é verdade em ocasiões como o Orçamento do Estado de 2025. Tanto com o famigerado corte no Orçamento do Desporto, como com a subida encapotada do imposto sobre os produtos petrolíferos ou o nível recorde das cativações, não houve oportunidade de coletivamente desmentir as afirmações em sentido contrário do Governo.
No final do dia, a nossa incapacidade de distinguir a verdade da inverdade e a consequente formulação de juízos políticos ou económicos com base em perceções erróneas não é apenas um sintoma de uma sociedade doente. Não é um efeito secundário chato mas necessário da liberdade de expressão. É mesmo um ataque à nossa liberdade de pensamento.
Diz-se que a liberdade de um acaba onde começa a liberdade do outro. É por isso que, quando o vice-presidente americano, J.D. Vance, se queixa dos ataques à liberdade de expressão na Europa, ele não devia pensar nas restrições justas à desinformação. Tampouco deveríamos falar de "liberdade de expressão" quando se descreve a forma como o "politicamente correto" consegue conter discurso de ódio ou discriminatório. Ainda bem que já não vivemos numa sociedade onde tudo possa ser dito a uma mulher na rua.
Deveríamos talvez exigir aos Estados Unidos da América que pusessem a mão na consciência sobre estarem a impedir a agência noticiosa Associated Press de acompanhar o seu Presidente por se recusar a chamar ao Golfo do México "Golfo da América".
Devíamos preocupar-nos com a Meta ter acabado com os "fact checks" para "voltar às raízes da liberdade de expressão", como já tive oportunidade de questionar o Governo. Devemos investir cada vez mais no jornalismo e valorizar o seu trabalho na luta pela verdade, e não tirar parte das suas receitas (como o Governo pretendia fazer, tirando a publicidade da RTP).
Deveríamos, mesmo, exigir um pacto de conduta responsável aos nossos políticos, para que sejam rigorosos e objetivos na forma como usam a informação e a estatística. Afinal, entre diferentes valores e respostas alternativas, há matéria suficiente para discordarmos sem pormos em causa factos ou em risco a democracia.
Álvaro Almeida, diretor executivo do SNS, terá dito, numa reunião com administradores hospitalares, que mesmo atrasando consultas e cirurgias, a ordem era para cortar.
O problema começa logo no cenário macroeconómico que o Governo traça. Desde o crescimento do PIB ao défice, não é só o Governo da AD que desmente o otimista programa eleitoral da AD.
Até pode ser bom obrigar os políticos a fazerem reformas, ainda para mais com a instabilidade política em que vivemos. E as ideias vêm lá de fora, e como o que vem lá de fora costuma ter muita consideração, pode ser que tenha também muita razão.
Ventura pode ter tido a sua imagem em cartazes pelo país fora que não engana os eleitores. Os portugueses demonstraram distinguir bem os atos eleitorais.
Para poder adicionar esta notícia aos seus favoritos deverá efectuar login.
Caso não esteja registado no site da Sábado, efectue o seu registo gratuito.
Para poder votar newste inquérito deverá efectuar login.
Caso não esteja registado no site da Sábado, efectue o seu registo gratuito.
O regresso de Ventura ao modo agressivo não é um episódio. É pensado e planeado e é o trilho de sobrevivência e eventual crescimento numa travessia que pode ser mais longa do que o antecipado. E que o desejado. Por isso, vai invocar muitos salazares até lá.
O espaço lusófono não se pode resignar a ver uma das suas democracias ser corroída perante a total desatenção da opinião pública e inação da classe política.
É muito evidente que hoje, em 2025, há mais terraplanistas, sim, pessoas que acreditam que a Terra é plana e não redonda, do que em 1925, por exemplo, ou bem lá para trás. O que os terraplanistas estão a fazer é basicamente dizer: eu não concordo com o facto de a terra ser redonda.