Sábado – Pense por si

Miguel Costa Matos
Miguel Costa Matos Economista e deputado do PS
24 de junho de 2025 às 08:23

A hipocrisia da guerra

O Presidente americano tornou o mundo mais volátil, tanto ao afastar-se dos seus aliados tradicionais, chamando a UE "inimiga", como ameaçando travar "guerras comerciais" com a China.

Gaza e Ucrânia não eram, pelos vistos, guerra suficiente. A poucos dias da Cimeira da NATO em Haia, Israel e Estados Unidos da América decidiram bombardear o Irão, dando início a uma escalada ilegal e ilegítima do conflito no Médio Oriente.

Tudo isto parece tão distante do compromisso que, há exatamente 80 anos, os países do mundo firmaram com a fundação das Nações Unidas – "nós, os povos das nações unidas, decididos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que por duas vezes, no espaço de uma vida humana, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade". De facto, o antigo primeiro-ministro português e atual Secretário-Geral da ONU, António Guterres, parece cada vez mais sozinho, seja na luta pela paz seja no combate às alterações climáticas ou pela dignidade de todas as pessoas humanas, incluindo os refugiados.

Como tantas coisas na vida, ou mais recentemente, como a ascensão do populismo de extrema-direita em Portugal, tudo aconteceu tão rapidamente. 2015 tinha sido um ano de esperança: Acordo de Paris, pacto nuclear com o Irão, cessar-fogo na Crimeia. O mundo acreditava nas regras do direito internacional. Hoje, acredita nas armas.

Em poucos anos, Trump mudou o mundo. O dano foi maior do que a saída de acordos internacionais – os Estados Unidos já se haviam retirado do Tratado de Versailles, do Protocolo de Quioto e do Estatuto de Roma. O Presidente americano tornou o mundo mais volátil, tanto ao afastar-se dos seus aliados tradicionais, chamando a UE "inimiga", como ameaçando travar "guerras comerciais" com a China. O seu isolacionismo, por sua vez, e a ineficácia europeia em ocupar esse espaço, fez com que a Rússia e a China entrassem em força nos continentes africano e latino-americano, convertendo apoios financeiros em realinhamentos geopolíticos.

O enfraquecimento, tanto da ordem internacional como do poder do Ocidente, têm hoje clara consequência na impunidade de Putin e de Netanyahu. Sejamos claros – quem condena violações de direitos internacionais na Ucrânia, tem de fazer o mesmo em Gaza. O mesmo se diga em relação ao Irão – se uma eventual ameaça de segurança não justifica a invasão russa da Ucrânia, a eventual ameaça nuclear iraniana não justifica o bombardeamento desse país.

No início deste século, numa situação semelhante, a Administração Bush teve, ao menos, a cortesia de tentar convencer as Nações Unidas a autorizar um ataque sobre o Iraque por haver indícios de que teriam "armas de destruição maciça". Aos dias de hoje, sabemos que esses indícios eram uma mentira mas a coreografia diplomática teve como objetivo justificar à comunidade internacional e aos povos dos seus respetivos países que havia motivos legítimos para ir para a guerra. Desta vez, nem se deram ao trabalho de fingir.

Em boa verdade, tinham material para isso. O relatório da Agência Internacional de Energia Atómica, não obstante indicar que não há "indicações credíveis de um programa nuclear estrutura e não-declarado", queixa-se de falta de cooperação do regime iraniano e alerta para a "acumulação rápida de urânio altamente enriquecido".

Mas partir para a guerra era desnecessário. Tanto a diplomacia americana como europeia tinham diligências em marcha tendo em vista um novo acordo para travar o programa nuclear iraniano. Ainda na sexta-feira, os Ministros de Negócios Estrangeiros de 3 países europeus encontraram-se, em Genebra, com o seu homólogo iraniano. A ofensiva americana literalmente rebentou com a avenida diplomática.

Aconteça o que acontecer nas retaliações mais imediatas, o Irão estará agora especialmente motivado para abandonar de vez as inspeções periódicas e os chamados "compromissos de salvaguarda", avançando rápido (e em segredo, naturalmente) para o desenvolvimento de uma arma nuclear, como já há uns anos fez a Coreia do Norte.

E a Europa? Esse projeto de paz, esse continente de valores? Nem depois de toda a destruição e de um relatório formal dos serviços da Comissão a confirmar violações de direitos humanos a Europa consegue pôr-se de acordo para suspender o tratado de associação entre Israel e a UE. Na NATO, o mesmo Mark Rutte que era tão frugal há uns meses como primeiro-ministro holandês, hoje ordena os aliados europeus a gastarem 5% do seu PIB em defesa – resta saber com que consequência para o investimento no Estado Social ou na transição climática. E como reagiu a Europa quando o procurador-chefe do Tribunal Penal Internacional viu o seu e-mail bloqueado por ordem do governo norte-americano, em plena Europa, na bela cidade de Haia onde terá lugar a cimeira da NATO?

Se nos deixarmos reduzir à função de meros acólitos no jogo belicista de Trump, não nos restará nem a satisfação da coerência. Os líderes políticos, sentados nas suas cimeiras, deveriam pensar bem. O resto do mundo já se fartou desta hipocrisia. Se nada fizermos, os nossos povos cansar-se-ão também, votando em soluções extremistas com outros alinhamentos internacionais. Oxalá Guterres, fiel faroleiro do mundo, não se canse também.

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