Sábado – Pense por si

Marta Fonseca Ferreira
Marta Fonseca Ferreira Advogada
16 de junho de 2025 às 07:00

O primeiro sábado 

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Edição de 5 a 11 de agosto

Mil e oitocentos e vinte e cinco dias desde que Teresa o acusara do impensável, desde que a sua vida se despedaçara como um puzzle atirado ao chão. As palavras "abuso sexual" tinham ecoado nas paredes frias do tribunal, tinham-no seguido pelos corredores do trabalho, tinham-se infiltrado nos seus pesadelos.

João acordou às seis da manhã, duas horas antes do despertador. O estômago revirava-se numa mistura de ansiedade e esperança que já não sentia há anos. Hoje era o dia. Depois de cinco anos de lutas judiciais, de convívios supervisionados, de quartas-feiras cronometradas e sábados roubados, finalmente ia ter a Beatriz um fim de semana inteiro. 

Cinco anos. Mil e oitocentos e vinte e cinco dias desde que Teresa o acusara do impensável, desde que a sua vida se despedaçara como um puzzle atirado ao chão. As palavras "abuso sexual" tinham ecoado nas paredes frias do tribunal, tinham-no seguido pelos corredores do trabalho, tinham-se infiltrado nos seus pesadelos. Mesmo depois do arquivamento, mesmo depois da decisão de não pronúncia, as palavras tinham permanecido como cicatrizes invisíveis. 

Mas João nunca desistira. Enquanto outros homens teriam fugido da dor, da humilhação pública, da filha que o olhava com olhos vazios durante os encontros no CAFAP, ele permanecera. Tinha engolido o orgulho, tinha aceite as condições humilhantes, tinha-se submetido a toda e qualquer avaliação psicológica. Porque do outro lado estava Beatriz. A sua Beatriz, que aos oito anos ainda corria para os seus braços, que lhe pedia para contar a história do dragão e da princesa todas as noites. 

Agora ela tinha treze anos. Treze anos e uma adolescência roubada por advogados e assistentes sociais, por relatórios e conferências de pais. Treze anos e um olhar que já não procurava o dele com cumplicidade. 

Às 9h45, João estacionou em frente à casa da avó materna. As mãos tremiam ligeiramente no volante. Viu-a através da janela - alta, quase uma mulher, com o cabelo castanho da mãe mas os seus olhos verdes. Beatriz desceu as escadas com a mala de fim de semana, cada passo pesado como quem marcha para o cadafalso. 

"Olá, filha," disse João, saindo do carro. "Olá," respondeu ela, sem levantar os olhos. 

O silêncio no carro foi ensurdecedor. A rádio tocava baixinho, mas nem a música conseguia preencher o abismo que se abria entre eles. João tentou algumas palavras sobre a escola, sobre os planos para o fim de semana, mas as respostas monossilábicas de Beatriz eram como muros que se erguiam a cada tentativa. 

Chegaram ao apartamento novo de João - um T2 modesto em Odivelas, mas com um quarto preparado especialmente para ela. Tinha uma secretária, uma estante com livros, fotografias dos dois em tempos felizes. Beatriz olhou em volta com a mesma expressão de quem visita um museu. 

"Queres almoçar fora?" perguntou João. "Tanto faz." 

Foram ao restaurante italiano que ela adorava em pequena. João observou-a mexer na massa com o garfo, comer em silêncio, responder às suas perguntas com monossílabos. A cada tentativa de conversa, sentia que se afastava dela um pouco mais. O pai em si gritava, desesperado: "Sou eu! O teu pai! Lembras-te dos nossos passeios ao jardim zoológico? Das histórias que inventávamos juntos? Das gargalhadas quando te fazia cócegas?" 

Mas Beatriz não se lembrava. Ou não queria lembrar-se. 

À tarde, tentaram um filme no cinema. Ela escolheu uma comédia romântica americana. João detestava aquele género, mas teria visto mil filmes iguais só para ouvir Beatriz rir. Mas ela não riu. Ficou ali, inerte, a olhar para o ecrã como quem cumpre uma penitência. 

No regresso a casa, João parou o carro num miradouro sobre a cidade. Lisboa estendia-se lá em baixo, dourada pela luz do fim de tarde. 

"Beatriz," disse ele, desligando o motor. "Sei que não queres estar aqui. Sei que te sentes obrigada." 

Ela virou-se para ele, finalmente. Havia lágrimas nos seus olhos. 

"Então porque me obrigas?" A voz saiu-lhe estrangulada. "Porque és minha filha. Porque te amo. Porque mesmo que me odeies, mesmo que nunca me perdoes por tudo isto, tens direito a conhecer-me." 

"Eu não te odeio," sussurrou ela. "Eu... eu tenho medo." "Medo de quê?" "Medo de gostar. Medo de te perdoar e depois descobrir que... que ela tinha razão." 

João sentiu o coração partir-se ao meio. Estendeu a mão devagar, como quem se aproxima de um animal ferido. Beatriz deixou-o tocar-lhe no rosto. 

"Ela não tinha razão, filha. Nunca teve. Eu nunca te faria mal. Nunca." 

As lágrimas dela caíram sobre a mão dele. 

"Eu lembro-me," confessou em soluços. "Lembro-me das histórias, dos passeios, de quando me levantavas ao colo quando tinha pesadelos. Lembro-me de tudo. Mas depois ela disse... e eu pensei... e já passou tanto tempo..." 

João abraçou-a. Depois de cinco anos, finalmente abraçou a sua filha. Ela chorou como não chorava desde os oito anos, chorou toda a confusão, toda a raiva, todo o amor guardado a sete chaves. 

"Posso... posso ficar aqui esta noite?" perguntou ela quando as lágrimas secaram. "Podes ficar sempre," respondeu João. "Sempre que quiseres." 

Nessa noite, depois do jantar, Beatriz pediu-lhe para contar a história do dragão e da princesa. João começou a narrativa que mil vezes contara quando ela era pequena, mas Beatriz interrompeu-o: 

"Não. Conta-me uma nova. Conta-me a história do pai que nunca desistiu." 

E João contou. Contou a história de um homem que enfrentara dragões de verdade - os do sistema judicial, os dos preconceitos, os do desespero. Contou a história de uma princesa que se perdera numa floresta de mentiras mas que, um dia, encontrara o caminho de volta para casa. 

Quando terminou, Beatriz já dormia. João beijou-lhe a testa, como fazia quando ela era pequena. 

Do lado de fora, Lisboa acendia as suas luzes. E pela primeira vez em cinco anos, João adormeceu em paz. Tinha roubado um beijo da testa da filha, tinha recuperado o amor que nunca perdera, tinha vencido o maior julgamento da sua vida. 

O fim de semana ainda mal começara, mas João já sabia: ia ser o primeiro de muitos. 

"Há vitórias que não cabem nas manchetes dos jornais, que não dão prémios nem medalhas. Há vitórias que se medem em abraços dados, em lágrimas partilhadas, em histórias contadas ao serão. Há vitórias que são simplesmente um pai e uma filha que se reencontram, depois de uma guerra que ninguém deveria ter de travar." 

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