Sábado – Pense por si

Marta Fonseca Ferreira
Marta Fonseca Ferreira Advogada
09 de junho de 2025 às 07:00

A loja secreta 

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Edição de 5 a 11 de agosto

O divórcio dos pais tinha sido devastador, especialmente para a sua mãe. Helena Santos tinha sessenta anos, nunca trabalhara fora de casa, dedicara-se inteiramente à família durante quarenta anos de casamento.

António olhou para o ecrã do computador pela décima vez nessa manhã. Ali estava ela, a "helenasantos_decor", a vender candeeiros e almofadas como se nada fosse. Como se não recebesse dois mil e quinhentos euros por mês dele há oito anos. Como se fosse uma mãe desamparada que precisava da ajuda do filho. 

Oito anos a pagar uma pensão que, agora percebia, era uma farsa. 

O divórcio dos pais tinha sido devastador, especialmente para a sua mãe. Helena Santos tinha sessenta anos, nunca trabalhara fora de casa, dedicara-se inteiramente à família durante quarenta anos de casamento. Quando o pai se foi embora com uma mulher mais nova, ela ficara completamente perdida, sem casa própria, sem poupanças, sem perspetivas. 

António, na altura com trinta e cinco anos e uma carreira consolidada na banca, não hesitara. "Não te preocupes, mãe. Eu sustento-te. Vais ficar bem." E começara a passar-lhe dois mil e quinhentos euros por mês - quase metade do seu salário líquido. "É temporário", pensara. "Até ela se adaptar à nova vida." 

Mas Helena Santos nunca se adaptara. Ou melhor, adaptara-se muito bem - tanto que montara um negócio online próspero enquanto continuava a receber a mesada do filho como se fosse uma indigente. 

A descoberta fora casual. A namorada andava a procurar peças de decoração no Instagram quando viu uma loja com produtos interessantes. "Olha, António, que candeeiros bonitos!" Ele olhou por cima do ombro dela e quase desmaiou. O nome de utilizador, a morada na biografia, até a forma de escrever - tudo gritava Helena Santos, sua mãe. 

Agora, três meses depois, estava no Tribunal de Arraiolos para a audiência final. A advogada, Rita Pereira Silva, uma mulher determinada de quarenta e poucos anos, organizava os documentos na mesa. 

"Tem a certeza disto, António?" perguntou ela. "Está a processar a sua própria mãe." 

"Preciso de fazer isto", respondeu ele, a voz tensa. "Não é só pelo dinheiro. É pela mentira." 

Tribunal Judicial da Comarca de Arraiolos 

11 de outubro de 2024, 14h30 

A sala estava quase vazia. Apenas António, a sua advogada, Helena Santos com o seu representante legal, e alguns funcionários judiciais. A juíza, Dra. Isabel Mendes, uma mulher de cabelos grisalhos e olhar penetrante, folheava o processo. 

"Estamos aqui para apreciar o pedido de cessação de pensão de alimentos apresentado pelo Sr. António Santos contra a Sra. Helena Santos, sua mãe," disse a juíza, com um tom que denunciava o desconforto da situação. "Sra. Doutora, pode começar." 

Rita Pereira Silva levantou-se. "Meritíssima, este é um caso doloroso para o meu constituinte, mas necessário. Durante quatro anos, a Sra. Helena Santos ocultou do filho o facto de ter uma atividade comercial lucrativa. Não estamos a falar de uns trocos para ocupar o tempo - estamos a falar de um negócio estruturado, com morada fiscal, com clientes regulares." 

Apontou para o ecrã onde estava projetada uma captura do Instagram. "A loja 'Helena Santos Decor' tem mais de quinze mil seguidores. Vende produtos de decoração importados, candeeiros artesanais, têxteis para o lar. Tem horário de funcionamento, responde a mensagens como qualquer empresa seria. E durante todo este tempo, continuou a receber dois mil e quinhentos euros mensais do meu constituinte, alegando que uma mulher da sua idade não conseguia trabalhar." 

A advogada de Helena Santos, Dr. João Martins, um homem franzino de óculos, mexeu-se desconfortavelmente na cadeira. 

A juíza virou-se para Helena Santos. "A senhora  confirma que tem esta atividade comercial?" 

Helena Santos, uma mulher de sessenta e oito anos ainda elegante mas visivelmente nervosa, hesitou. "Sim, Meritíssima, mas... comecei isto como um hobby. Para não ficar em casa o dia todo a pensar no divórcio. Nunca pensei que fosse dar em nada..." 

"Minha senhora," interrompeu Rita, "o meu constituinte fez várias compras na sua loja, sem se identificar. Tem aqui as faturas. Um candeeiro por cento e vinte euros, umas almofadas por noventa. Com que frequência faz vendas destes valores?" 

"Eu... varia muito..." 

"Meritíssima, junto aos autos os extratos bancários que conseguimos obter. Mostram depósitos regulares na conta da Sra. Helena Santos desde novembro de 2020. Depósitos que totalizam, nos últimos doze meses, aproximadamente dezoito mil euros." 

O silêncio na sala era ensurdecedor. Helena Santos olhava para o filho, os olhos cheios de lágrimas. 

A juíza folheou os documentos. "Sr. Santos, quando descobriu esta situação?" 

António respirou fundo antes de responder. "Em julho, Meritíssima. A minha namorada mostrou-me a loja por acaso. Fiquei... fiquei em choque. Não conseguia acreditar que a minha própria mãe me estivesse a mentir há anos." 

"E nunca a Sra. Helena Santos lhe disse que tinha iniciado esta atividade?" 

"Nunca. Pelo contrário. Sempre que eu perguntava se estava bem financeiramente, se precisava de mais alguma coisa, ela dizia que era difícil viver só com a minha ajuda, que os tempos estavam duros, que uma mulher da idade dela não arranjava trabalho." 

A juíza virou-se para Helena Santos. "Porque é que não informou o seu filho da sua atividade comercial?" 

Helena Santos finalmente ergueu os olhos, e António viu o desespero no rosto da mãe. "Porque... porque tinha medo de que ele pensasse que já não precisava dele." 

A voz dela tremeu. "Doutor, o meu filho é tudo o que tenho. Quando o pai me deixou, senti-me completamente inútil, rejeitada. Pela primeira vez em quarenta anos não tinha um homem a sustentar-me. O António foi a minha salvação. E quando comecei a vender umas coisinhas na internet, no início era mesmo só para me distrair... mas depois vi que conseguia ganhar algum dinheiro e..." 

Começou a chorar. "Tive medo. Medo de que se soubesse que conseguia sustentar-me sozinha, deixasse de precisar de mim. Tive medo de ficar completamente sozinha." 

António sentiu o coração apertar-se. Não esperara isto. Esperara ganância, malícia. Não esperara... abandono. 

"D. Helena Santos," disse a juíza gentilmente, "compreendo os seus receios, mas o que fez foi incorreto. Está a receber sustento do seu filho sob falsos pretextos." 

Dr. João Martins tentou uma defesa: "Meritíssima, a minha constituinte está numa idade vulnerável, passou por um divórcio traumático aos sessenta anos. O receio de abandono é compreensível..." 

"Receio ou não," a voz de Rita era firme, "são sessenta mil euros recebidos indevidamente nos últimos dois anos. O meu constituinte tem a sua própria vida para construir, talvez uma família. Não pode sustentar indefinidamente uma mãe que afinal se sustenta a si própria." 

A juíza fez uma pausa longa. "Vou deliberar. Regressamos em quinze minutos." 

 

No corredor, mãe e filho ficaram em silêncio por longos minutos. Finalmente, Helena Santos aproximou-se. 

"António... perdoa-me." 

Ele olhou para ela. A mulher que o criara, que lhe fizera sanduíches para a escola, que chorava quando ele se magoava. Agora parecia tão pequena, tão frágil. 

"Mãe, porque não me disseste? Ficaria orgulhoso de ti. Uma mulher de sessenta anos a começar um negócio próprio..." 

"Porque tinha medo de que deixasses de me ligar, de vir cá a casa. O dinheiro que me davas era... era a nossa ligação. Era a prova de que te importavas comigo." 

António sentiu os olhos arderem. "Mãe, tu és minha mãe. Não precisas de uma desculpa financeira para eu gostar de ti." 

"Eu sei, filho. Agora sei. Mas na altura... estava tão perdida, tão assustada..." 

 

Quinze minutos depois 

A juíza voltou com ar grave. "Depois de analisar toda a prova apresentada, e considerando as especiais circunstâncias emocionais deste caso, decido da seguinte forma: 

Primeiro: A pensão de alimentos fica cessada com efeitos imediatos, dado que a alimentanda tem meios próprios de subsistência. 

Segundo: Considerando a idade da alimentanda, as circunstâncias do seu divórcio, e o facto de ter agido por insegurança emocional e não por ganância, a Sra. Helena Santos deverá restituir ao Sr. António Santos apenas quinze mil euros, correspondente a um quarto dos valores recebidos indevidamente, pagos em prestações mensais de trezentos euros. 

Terceiro: Recomendo vivamente que ambas as partes procurem apoio psicológico para lidar com as questões emocionais subjacentes a este conflito familiar." 

Helena Santos começou a chorar, mas desta vez de alívio. António sentiu-se... confuso. Livre, mas também triste. 

 

Seis meses depois 

António estava a jantar na casa nova da mãe - um apartamento pequeno mas acolhedor em Évora, decorado com peças da própria loja - quando ela trouxe o assunto. 

"António, já transferi a sexta prestação. E queria dizer-te uma coisa." 

"Diz, mãe." 

"Obrigada. Por me teres obrigado a crescer. Por me teres mostrado que consigo viver sozinha." 

António sorriu. "Como está o negócio?" 

"Está bem. Muito bem, até. Abri uma pequena loja física aqui na cidade. E... inscrevi-me num grupo de mulheres divorciadas. Fazemos caminhadas, vamos ao cinema. Pela primeira vez em anos, tenho amigas." 

Houve uma pausa. 

"António?" 

"Sim?" 

"Desculpa ter-te feito passar por isso. Mas obrigada por não teres desistido de mim." 

António levantou-se e abraçou a mãe. "Nunca desistiria de ti, mãe. Mas agora gosto ainda mais de ti. Porque finalmente te conheço a ti, não à mulher que pensava que precisava de mim para sobreviver." 

Helena Santos sorriu entre lágrimas. "O teu pai sempre disse que eu não valia nada sozinha. Que nunca conseguiria viver sem um homem a cuidar de mim." 

"Ele estava errado", disse António. "E agora toda a gente pode ver isso." 

No dia seguinte, António recebeu uma mensagem da Rita: "Vi que a loja da tua mãe foi mencionada no jornal local. Está a ir bem. Acho que fizemos o certo, António. Para vocês os dois." 

Sim, tinham feito o certo. Às vezes, o amor verdadeiro exige coragem para deixar as pessoas serem livres. 

"Há dependências que se disfarçam de amor. E há amores que se disfarçam de dependência. Só a verdade - mesmo quando dói - pode distinguir uma da outra." 

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