Sábado – Pense por si

Marta Fonseca Ferreira
Marta Fonseca Ferreira Advogada
22 de setembro de 2025 às 07:00

O Desenho da Lara

Capa da Sábado Edição 16 a 22 de setembro
Leia a revista
Em versão ePaper
Ler agora
Edição de 16 a 22 de setembro

Ricardo olhou para o desenho da filha. "Lara, não te sentes confusa por teres famílias diferentes?" "Não, pai. É como ter duas equipas de futebol favoritas. Posso gostar das duas."

No Tribunal de Família do Funchal, a psicóloga Dr.ª Sofia Mendes preparava-se para avaliar a capacidade parental de Cristina Freitas quando reparou num desenho colado na parede da sala de espera. Era claramente feito por uma criança - uma casa com uma família de três figuras desenhadas com lápis de cor.

"Quem fez este desenho?" perguntou à funcionária.

"A Lara, a filha da D. Cristina. Ela desenha sempre enquanto espera pelas consultas comigo."

A Dr.ª Mendes olhou mais atentamente. No desenho, as três figuras estavam de mãos dadas: uma mulher, uma criança e... uma figura que parecia ter características tanto masculinas quanto femininas.

Cristina Freitas, de trinta e dois anos, estava em processo de regulação das responsabilidades parentais após a separação de Ricardo Santos. A particularidade do caso era que Cristina tinha iniciado uma relação com Sara Costa, e o ex-marido alegava que a filha de seis anos estava confusa com a nova situação familiar.

"D. Cristina," começou a Dr.ª Mendes na consulta, "reparei no desenho que a Lara fez. Pode explicar-me quem são as pessoas representadas?"

Cristina olhou para o desenho. "Sou eu, a Lara e a Sara. Ela desenhou-nos como uma família."

"E como é que a Lara vê a Sara?"

"Como a 'mãe Sara'. Ela tem muita dificuldade em explicar a situação na escola. Os outros meninos fazem perguntas que ela não sabe responder."

"Que tipo de perguntas?"

"Se tem duas mães, se o pai não gosta dela por isso, se é normal." Cristina suspirou. "Às vezes chega a casa em lágrimas porque não consegue explicar que pode amar o pai e ao mesmo tempo gostar de viver connosco."

Na semana seguinte, Ricardo compareceu à sua consulta. Era um homem de trinta e cinco anos, visivelmente tenso.

"Sr. Ricardo, qual é a sua maior preocupação em relação à Lara?"

"Que ela cresça confusa sobre o que é uma família normal. Já me perguntou se também posso ter um namorado, se todas as mães têm namoradas. Não sei o que responder."

"E o que tem respondido?"

"Que há diferentes tipos de família, mas... sinceramente, Dr.ª Sofia, não sei se acredito nisso. Preocupa-me que ela seja discriminada na escola, que não compreenda os papéis familiares tradicionais."

A Dr.ª Mendes mostrou-lhe o desenho da Lara. "O que vê aqui?"

Ricardo estudou o desenho por um longo momento. "A minha filha desenhou uma família. Mas não somos nós os três."

"Não. Mas é como ela vê a família onde vive atualmente. Repare que todas as figuras estão sorridentes."

"Mas eu não estou no desenho."

"Não, não está. Como se sente com isso?"

Ricardo ficou calado, olhando para o desenho. "Deixado de fora."

Na sessão conjunta seguinte, a Dr.ª Mendes pediu à Lara para fazer um novo desenho, mas desta vez de todas as pessoas importantes na sua vida.

Lara pegou nos lápis de cor e começou a desenhar com concentração. Fez duas casas lado a lado. Numa casa desenhou-se com a mãe e Sara. Na outra, desenhou-se com o pai. Entre as duas casas, desenhou um caminho com uma menina a andar de bicicleta.

"Podes explicar-nos o teu desenho, Lara?" pediu a psicóloga.

"Esta é a casa da mãe e da mãe Sara. Esta é a casa do pai. E eu ando de bicicleta entre as duas casas."

"E como te sentes a andar de bicicleta?"

"Feliz. Porque posso ir às duas casas e ter duas famílias diferentes."

"E os teus amigos na escola, o que dizem?"

"Alguns dizem que é estranho ter duas mães. Mas a Joana disse que ela tem duas casas também, só que o pai dela tem uma namorada nova. E o Tomás disse que ele vive só com a avó, e a avó é a mãe dele e o pai ao mesmo tempo."

Ricardo olhou para o desenho da filha. "Lara, não te sentes confusa por teres famílias diferentes?"

"Não, pai. É como ter duas equipas de futebol favoritas. Posso gostar das duas."

Após várias sessões, a Dr.ª Mendes reuniu com os três adultos.

"A Lara não está confusa," concluiu. "Ela tem uma compreensão muito clara da sua situação familiar. O que ela tem dificuldade é em explicar aos outros uma realidade que os adultos à volta dela também têm dificuldade em aceitar."

"O que sugere?" perguntou Cristina.

"Que trabalhem juntos para dar à Lara um vocabulário para falar sobre a sua família. E que, mais importante, lhe mostrem que todos os adultos na vida dela estão em sintonia, mesmo sendo famílias diferentes."

Ricardo olhou novamente para os desenhos. "Posso ficar com uma cópia destes desenhos?"

"Claro," respondeu a Dr.ª Mendes. "Mas posso perguntar porquê?"

"Porque quero pô-los no meu escritório. Para me lembrar que a felicidade da Lara não depende de ela ter uma família como as outras. Depende de ela saber que é amada em todas as famílias que tem."

Três meses depois, a Dr.ª Mendes recebeu um novo desenho pelo correio. Mostrava três casas: a casa da mãe e mãe Sara, a casa do pai, e uma casa nova que dizia "casa da avó paterna e da tia Sara" - aparentemente, a família de Ricardo tinha começado a incluir Sara nos eventos familiares.

No centro do desenho, a mesma menina de bicicleta, mas agora com um sorriso ainda maior, pedalando entre as três casas.

Mais crónicas do autor
22 de setembro de 2025 às 07:00

O Desenho da Lara

Ricardo olhou para o desenho da filha. "Lara, não te sentes confusa por teres famílias diferentes?" "Não, pai. É como ter duas equipas de futebol favoritas. Posso gostar das duas."

15 de setembro de 2025 às 07:00

O Álbum de Fotografias

José olhava para o álbum com expressão nostálgica. "A Patrícia perguntou-me no outro dia se não me arrependo de ter estragado a família. E eu não soube o que responder."

01 de setembro de 2025 às 07:00

O Espelho Partido

"Representa tudo o que não sei como dividir. As memórias, os rituais diários, as pequenas tradições. Posso dividir móveis e brinquedos, mas como divido os momentos em que penteava o cabelo da Ema todos os dias enquanto ela se olhava no espelho?"

25 de agosto de 2025 às 07:00

O Cachecol Vermelho

"O cachecol é uma herança de família," contrapôs a advogada de Beatriz. "Quando o casamento terminou, os objetos sentimentais da família Sousa deveriam ter regressado à família."

18 de agosto de 2025 às 07:00

A Chave Esquecida

A chave ainda funcionava perfeitamente. Entraram na cozinha onde tinham tomado milhares de pequenos-almoços, onde tinham discutido problemas dos filhos, onde tinham planeado férias que já pareciam de outras vidas.

Mostrar mais crónicas