"Representa tudo o que não sei como dividir. As memórias, os rituais diários, as pequenas tradições. Posso dividir móveis e brinquedos, mas como divido os momentos em que penteava o cabelo da Ema todos os dias enquanto ela se olhava no espelho?"
No Tribunal de Braga, a assistente social Helena Costa preparava-se para mais uma audiência de regulação de responsabilidades parentais quando notou algo estranho na sala de espera. Sandra Oliveira, de trinta e cinco anos, segurava um espelho de mão antigo com uma racha no meio. Ao lado dela, o ex-marido Paulo Silva folheava nervosamente documentos.
"D. Sandra," chamou Helena, aproximando-se. "Tudo bem? Notei que está a segurar um espelho."
Sandra olhou para o objeto nas suas mãos como se só agora se apercebesse de que o trazia.
"Encontrei-o esta manhã quando estava a arrumar as últimas coisas do quarto da Ema. Esteve sempre na sua cómoda. Agora não sei onde o pôr."
Helena observou o espelho mais atentamente. Era claramente uma peça antiga, com o cabo em prata trabalhada, mas uma racha percorria todo o vidro de alto a baixo.
"É especial?"
"Foi da minha avó. Depois foi meu, e quando a Ema nasceu, pus na cómoda dela. Ela adorava olhar-se nele quando eu a penteava."
"E agora?"
"Agora a Ema vai viver principalmente com o Paulo. E eu não sei se devo levar o espelho ou se deve ficar com ela."
A audiência começou meia hora depois. O juiz Dr. Rui Fernandes presidia a um caso que, à superfície, parecia simples: Ema, de nove anos, iria viver principalmente com o pai após a mãe ter aceitado um emprego em Aveiro que exigia viagens frequentes.
"Compreendo que esta mudança é consensual," disse o juiz, revisando os documentos. "A D. Sandra tem melhores oportunidades profissionais em Aveiro, e o Sr. Paulo pode proporcionar mais estabilidade à Ema em Braga."
"Sim, Meritíssimo," confirmou Sandra. "É o melhor para a Ema, mesmo que seja difícil para mim."
"E vão manter um regime de visitas regular?"
"A Ema passa comigo fins de semana alternados e metade das férias," explicou Paulo. "E sempre que a Sandra estiver em Braga."
Tudo parecia decidido até que a assistente social pediu para falar.
"Meritíssimo, gostaria de abordar uma questão que pode parecer menor, mas que observei hoje. A D. Sandra trouxe um espelho que pertenceu à filha e não sabe se deve levá-lo ou deixá-lo."
O juiz olhou confuso. "Um espelho?"
Sandra mostrou o espelho partido. "Sei que parece uma coisa pequena, mas..."
"Posso vê-lo?" pediu o juiz.
Sandra aproximou-se e entregou-lhe o espelho. O Dr. Fernandes examinou-o cuidadosamente.
"Está partido."
"Partiu-se há cerca de dois anos. A Ema deixou-o cair quando estava a brincar com as bonecas. Ficou muito aflita, disse que tinha estragado o espelho da bisavó."
"E não o mandaram arranjar?"
"Tentámos," explicou Paulo. "Mas o vidraceiro disse que espelhos antigos são difíceis de reparar. E a Ema disse que gostava dele assim, que o via como se fosse dois espelhos num só."
"Dois espelhos num só," repetiu o juiz, pensativo. "E porque trouxe hoje o espelho, D. Sandra?"
Sandra hesitou. "Porque representa tudo o que não sei como dividir. As memórias, os rituais diários, as pequenas tradições. Posso dividir móveis e brinquedos, mas como divido os momentos em que penteava o cabelo da Ema todos os dias enquanto ela se olhava no espelho?"
"E o Sr. Paulo, o que pensa?"
Paulo olhou para o espelho nas mãos do juiz. "Penso que a Ema precisa de levar o espelho para onde quer que vá. Mas não sei como explicar-lhe que agora também se vai olhar nele sem a mãe ao lado."
A assistente social interveio novamente. "Posso sugerir algo? Talvez possamos chamar a Ema para falar connosco sobre o espelho. Às vezes as crianças têm soluções que nós, adultos, não vemos."
Vinte minutos depois, Ema entrou na sala de audiências. Era uma menina esperta, com cabelo castanho comprido e olhos que revelavam maturidade precoce.
"Ema," disse o juiz com gentileza, "a tua mãe trouxe o teu espelho hoje. Podes dizer-nos porque é especial para ti?"
Ema olhou para o espelho nas mãos do juiz. "É da minha bisavó, mas também é meu. A minha mãe usava-o para me pentear todos os dias antes da escola."
"E o que pensas da racha?"
"No início fiquei triste porque o tinha partido. Mas depois percebi que podia ver-me dos dois lados. Do lado esquerdo vejo-me mais parecida com a mãe. Do lado direito mais parecida com o pai."
Os adultos na sala trocaram olhares surpresos.
"E agora que vais viver principalmente com o teu pai, onde achas que o espelho deve ficar?"
Ema pensou por um momento. "Posso levá-lo comigo quando vou ter com a mãe e trazer de volta quando venho para casa do pai?"
"Como uma ponte entre as duas casas?" sugeriu a assistente social.
"Sim! Assim continuo a ver-me dos dois lados, e tanto a mãe como o pai podem pentear-me."
O juiz sorriu. "É uma solução muito sábia, Ema. Mas e se o espelho se partir mais?"
"Então temos de arranjar outro. Mas espero que não se parta mais, porque gosto de me ver inteira, mesmo que seja em dois pedaços."
Três meses depois, Helena Costa recebeu uma mensagem de Sandra com uma fotografia. Mostrava Ema ao espelho partido, mas desta vez Paulo estava por trás dela, penteando-lhe o cabelo. A mensagem dizia: "O espelho continua partido, mas a Ema continua inteira. Obrigada por nos ensinarem que algumas coisas partidas funcionam melhor do que as inteiras."
O Dr. Fernandes guardou uma cópia da fotografia no processo. Anos mais tarde, sempre que tinha casos de separações difíceis, mostrava a imagem e contava a história do espelho partido que ensinara a uma família que a verdadeira unidade não depende de estar tudo no mesmo lugar, mas de saber que o amor permanece intacto mesmo quando refletido em pedaços separados.
"Representa tudo o que não sei como dividir. As memórias, os rituais diários, as pequenas tradições. Posso dividir móveis e brinquedos, mas como divido os momentos em que penteava o cabelo da Ema todos os dias enquanto ela se olhava no espelho?"
"O cachecol é uma herança de família," contrapôs a advogada de Beatriz. "Quando o casamento terminou, os objetos sentimentais da família Sousa deveriam ter regressado à família."
A chave ainda funcionava perfeitamente. Entraram na cozinha onde tinham tomado milhares de pequenos-almoços, onde tinham discutido problemas dos filhos, onde tinham planeado férias que já pareciam de outras vidas.
"Às vezes precisamos de lembrar que há diferentes formas de medir o tempo. Há o tempo dos adultos, cronometrado e urgente. E há o tempo das crianças, que se mede em sorrisos e abraços", explicou a juíza Dr.ª Isabel Moreira.
O juiz ouviu com atenção, mas a cadeira traía-o: inclinava-se sempre ligeiramente para a direita, como se forçasse todas as decisões para um dos lados.
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