Sábado – Pense por si

Marta Fonseca Ferreira
Marta Fonseca Ferreira Advogada
06 de outubro de 2025 às 07:00

O Caderno de Receitas

Capa da Sábado Edição 30 de setembro a 6 de outubro
Leia a revista
Em versão ePaper
Ler agora
Edição de 30 de setembro a 6 de outubro

Seis meses depois, a juíza recebeu um frasco de compota de pêssego. Dentro do frasco, um bilhete: "Algumas heranças não se dividem. Multiplicam-se."

No Tribunal de Família de Coimbra, a escrivã Teresa notou que D. Lurdes Almeida, de sessenta e oito anos, trazia sempre consigo um caderno de capa florida cada vez que vinha às audiências sobre a herança do marido. Do outro lado da mesa, o enteado Miguel Almeida, de quarenta e cinco anos, olhava para aquele caderno com uma mistura de curiosidade e irritação.

"É sobre a quinta em Montemor-o-Velho," explicava o advogado de Miguel. "O meu cliente considera que a propriedade deve ser vendida e o dinheiro dividido conforme o testamento. A D. Lurdes, como segunda esposa, tem direito à sua parte, mas não pode impedir a venda."

A juíza Dr.ª Fernanda Ribeiro folheava o processo. O falecido António Almeida tinha deixado a quinta aos dois filhos do primeiro casamento, mas assegurado o direito de habitação vitalícia à segunda mulher.

"D. Lurdes," dirigiu-se à viúva, "compreende que legalmente o Miguel e a irmã podem forçar a venda da propriedade?"

"Compreendo, Meritíssima. Mas aquela quinta não é só terreno e pedra. É onde tenho a minha horta, onde faço as compotas que vendo na feira, onde..." Apertou o caderno contra o peito. "É onde está a minha vida."

"Minha senhora," interrompeu Miguel, "a senhora viveu lá apenas oito anos. Nós crescemos naquela quinta."

"E depois abandonaram-na durante vinte anos," respondeu D. Lurdes calmamente. "Quando casei com o vosso pai, a quinta estava ao abandono. As paredes com infiltrações, a horta coberta de silvas."

A juíza reparou no caderno. "D. Lurdes, posso perguntar o que tem aí?"

"São as receitas da família do António. Quando casei com ele, a primeira mulher já tinha morrido há cinco anos. Ele disse-me que a Helena fazia uns doces maravilhosos, mas que não sabia as receitas. Comecei a experimentar, a tentar reproduzir os sabores que ele se lembrava."

Abriu o caderno e mostrou páginas cobertas de anotações manuscritas. "Esta é a receita dos pastéis de nata da Helena. Demorei dois anos até conseguir o sabor certo. E esta dos sonhos que ela fazia no Carnaval."

Miguel olhou para as páginas com expressão confusa. "Não sabia que a minha mãe fazia sonhos."

"Fazia. O vosso pai dizia que vocês adoravam. E esta é a receita do bolo de mel que ela oferecia sempre aos vizinhos no Natal."

"Lembro-me desse bolo," murmurou Miguel, a voz subitamente embargada.

"Tenho também receitas que criei eu. Mas baseadas nas dela. Como se fosse uma conversa entre nós as duas, mediada pela cozinha."

A juíza inclinou-se para a frente. "E porque traz o caderno às audiências?"

"Porque é a prova de que não fui à quinta roubar memórias. Fui honrá-las. Cada receita que aprendi, cada tradição que mantive, foi uma forma de cuidar do que a Helena deixou."

Miguel pediu para ver o caderno. D. Lurdes hesitou, depois entregou-lho. Ele folheou lentamente as páginas.

"Aqui diz 'Broa especial do Miguel,'" leu em voz alta.

"O seu pai disse-me que você adorava broa com chouriço. Experimentei até fazer uma que ele dissesse que estava igual à da sua mãe."

"E fez?"

"Fiz. Todas as vezes que vocês vinham à quinta, eu fazia broa. Mesmo quando vocês mal me cumprimentavam."

A sala ficou em silêncio. Miguel continuou a folhear, encontrando receitas anotadas com "Para a Catarina" e "Favorito do João" - os nomes dos filhos.

"Porque nunca nos disse que tinha estas receitas?"

"Porque vocês nunca me perguntaram. Achavam que eu era uma intrusa que queria apagar a memória da vossa mãe. Mas eu queria era preservá-la."

A juíza propôs uma pausa. Quando voltaram, Miguel tinha uma proposta diferente.

"D. Lurdes, e se não vendermos a quinta imediatamente? E se lhe dermos dois anos para encontrar uma alternativa?"

"Em troca de quê?" perguntou o advogado.

"Em troca de me ensinar as receitas da minha mãe. E das suas também."

D. Lurdes sorriu pela primeira vez em meses. "E posso continuar a fazer as compotas para a feira?"

"Pode. E pode ensinar os meus filhos. Eles nunca conheceram a avó Helena, mas podiam conhecer os sabores que ela deixou."

Seis meses depois, a juíza recebeu um frasco de compota de pêssego com uma etiqueta: "Quinta da Boa Memória - Receita da Helena Almeida, aperfeiçoada pela Lurdes Almeida, preservada pelo Miguel Almeida."

Dentro do frasco, um bilhete: "Algumas heranças não se dividem. Multiplicam-se."

Mais crónicas do autor
06 de outubro de 2025 às 07:00

O Caderno de Receitas

Seis meses depois, a juíza recebeu um frasco de compota de pêssego. Dentro do frasco, um bilhete: "Algumas heranças não se dividem. Multiplicam-se."

29 de setembro de 2025 às 07:00

A Boneca de Porcelana

O juiz observou as duas mulheres. Era evidente que havia mais nesta disputa do que uma simples boneca. "Posso perguntar como acabou a vossa amizade?"

22 de setembro de 2025 às 07:00

O Desenho da Lara

Ricardo olhou para o desenho da filha. "Lara, não te sentes confusa por teres famílias diferentes?" "Não, pai. É como ter duas equipas de futebol favoritas. Posso gostar das duas."

15 de setembro de 2025 às 07:00

O Álbum de Fotografias

José olhava para o álbum com expressão nostálgica. "A Patrícia perguntou-me no outro dia se não me arrependo de ter estragado a família. E eu não soube o que responder."

01 de setembro de 2025 às 07:00

O Espelho Partido

"Representa tudo o que não sei como dividir. As memórias, os rituais diários, as pequenas tradições. Posso dividir móveis e brinquedos, mas como divido os momentos em que penteava o cabelo da Ema todos os dias enquanto ela se olhava no espelho?"

Mostrar mais crónicas