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Seis meses depois, a juíza recebeu um frasco de compota de pêssego. Dentro do frasco, um bilhete: "Algumas heranças não se dividem. Multiplicam-se."
No Tribunal de Família de Coimbra, a escrivã Teresa notou que D. Lurdes Almeida, de sessenta e oito anos, trazia sempre consigo um caderno de capa florida cada vez que vinha às audiências sobre a herança do marido. Do outro lado da mesa, o enteado Miguel Almeida, de quarenta e cinco anos, olhava para aquele caderno com uma mistura de curiosidade e irritação.
"É sobre a quinta em Montemor-o-Velho," explicava o advogado de Miguel. "O meu cliente considera que a propriedade deve ser vendida e o dinheiro dividido conforme o testamento. A D. Lurdes, como segunda esposa, tem direito à sua parte, mas não pode impedir a venda."
A juíza Dr.ª Fernanda Ribeiro folheava o processo. O falecido António Almeida tinha deixado a quinta aos dois filhos do primeiro casamento, mas assegurado o direito de habitação vitalícia à segunda mulher.
"D. Lurdes," dirigiu-se à viúva, "compreende que legalmente o Miguel e a irmã podem forçar a venda da propriedade?"
"Compreendo, Meritíssima. Mas aquela quinta não é só terreno e pedra. É onde tenho a minha horta, onde faço as compotas que vendo na feira, onde..." Apertou o caderno contra o peito. "É onde está a minha vida."
"Minha senhora," interrompeu Miguel, "a senhora viveu lá apenas oito anos. Nós crescemos naquela quinta."
"E depois abandonaram-na durante vinte anos," respondeu D. Lurdes calmamente. "Quando casei com o vosso pai, a quinta estava ao abandono. As paredes com infiltrações, a horta coberta de silvas."
A juíza reparou no caderno. "D. Lurdes, posso perguntar o que tem aí?"
"São as receitas da família do António. Quando casei com ele, a primeira mulher já tinha morrido há cinco anos. Ele disse-me que a Helena fazia uns doces maravilhosos, mas que não sabia as receitas. Comecei a experimentar, a tentar reproduzir os sabores que ele se lembrava."
Abriu o caderno e mostrou páginas cobertas de anotações manuscritas. "Esta é a receita dos pastéis de nata da Helena. Demorei dois anos até conseguir o sabor certo. E esta dos sonhos que ela fazia no Carnaval."
Miguel olhou para as páginas com expressão confusa. "Não sabia que a minha mãe fazia sonhos."
"Fazia. O vosso pai dizia que vocês adoravam. E esta é a receita do bolo de mel que ela oferecia sempre aos vizinhos no Natal."
"Lembro-me desse bolo," murmurou Miguel, a voz subitamente embargada.
"Tenho também receitas que criei eu. Mas baseadas nas dela. Como se fosse uma conversa entre nós as duas, mediada pela cozinha."
A juíza inclinou-se para a frente. "E porque traz o caderno às audiências?"
"Porque é a prova de que não fui à quinta roubar memórias. Fui honrá-las. Cada receita que aprendi, cada tradição que mantive, foi uma forma de cuidar do que a Helena deixou."
Miguel pediu para ver o caderno. D. Lurdes hesitou, depois entregou-lho. Ele folheou lentamente as páginas.
"Aqui diz 'Broa especial do Miguel,'" leu em voz alta.
"O seu pai disse-me que você adorava broa com chouriço. Experimentei até fazer uma que ele dissesse que estava igual à da sua mãe."
"E fez?"
"Fiz. Todas as vezes que vocês vinham à quinta, eu fazia broa. Mesmo quando vocês mal me cumprimentavam."
A sala ficou em silêncio. Miguel continuou a folhear, encontrando receitas anotadas com "Para a Catarina" e "Favorito do João" - os nomes dos filhos.
"Porque nunca nos disse que tinha estas receitas?"
"Porque vocês nunca me perguntaram. Achavam que eu era uma intrusa que queria apagar a memória da vossa mãe. Mas eu queria era preservá-la."
A juíza propôs uma pausa. Quando voltaram, Miguel tinha uma proposta diferente.
"D. Lurdes, e se não vendermos a quinta imediatamente? E se lhe dermos dois anos para encontrar uma alternativa?"
"Em troca de quê?" perguntou o advogado.
"Em troca de me ensinar as receitas da minha mãe. E das suas também."
D. Lurdes sorriu pela primeira vez em meses. "E posso continuar a fazer as compotas para a feira?"
"Pode. E pode ensinar os meus filhos. Eles nunca conheceram a avó Helena, mas podiam conhecer os sabores que ela deixou."
Seis meses depois, a juíza recebeu um frasco de compota de pêssego com uma etiqueta: "Quinta da Boa Memória - Receita da Helena Almeida, aperfeiçoada pela Lurdes Almeida, preservada pelo Miguel Almeida."
Dentro do frasco, um bilhete: "Algumas heranças não se dividem. Multiplicam-se."
Ricardo olhou para o desenho da filha. "Lara, não te sentes confusa por teres famílias diferentes?" "Não, pai. É como ter duas equipas de futebol favoritas. Posso gostar das duas."
José olhava para o álbum com expressão nostálgica. "A Patrícia perguntou-me no outro dia se não me arrependo de ter estragado a família. E eu não soube o que responder."
"Representa tudo o que não sei como dividir. As memórias, os rituais diários, as pequenas tradições. Posso dividir móveis e brinquedos, mas como divido os momentos em que penteava o cabelo da Ema todos os dias enquanto ela se olhava no espelho?"
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