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Esta discussão é a consequência de a cultura ser o parente pobre da política. As artes são mal tratadas, até ao ponto em que o argumento que mais ouvi foi "78 mil euros por um logo?".
A primeira medida do governo de Luís Montenegro foi a reversão do logótipo governamental criado pelo XXIII governo constitucional. Embora este logo tinha sido implementado no primeiro semestre de 2023, a discussão explodiu durante o inverno passado e Luís Montenegro imediatamente prometeu reverter a nova identidade visual. Montenegro capitalizou este fenómeno e cumpriu a sua promessa: a sua primeira medida foi repor o antigo logótipo.
Enquanto escrevia este texto pensava para mim mesmo, porque é que um logo causou tanta celeuma? Por que é que com eleições europeias à porta, com desafios estruturais como o da habitação, o da construção do novo aeroporto, o da valorização de forças de segurança ou o da deterioração do sistema educativo, é na identidade visual do governo da República que a discussão pública se centra?
No início, estava cético e, até no meu próprio podcast, afirmei que isto devia-se ao fascínio pela espuma dos dias. Contudo, quanto mais refletia, mais entendia. Esta discussão é a consequência de a cultura ser o parente pobre da política. As artes são mal tratadas, até ao ponto em que o argumento que mais ouvi foi "78 mil euros por um logo?". A incoerência deste argumento reside exatamente na subvalorização da importância do design gráfico: se este logo não fosse algo importante, ninguém quereria saber dele, e, como em tudo na vida: Se queremos qualidade, temos de pagar por ela.
Este tipo de argumento e de desvalorização não nasceu hoje. Vivemos numa sociedade crescentemente individualista, em que a arte e tudo o que não seja economicamente lucrativo a curto prazo é visto como mau investimento. Esta visão é consequência de uma certa forma de pensar neo-liberal, que emergiu nos anos 80, na qual domina a tecnocracia em nome do PIB, do mérito e da glorificação do dinheiro, que nos foi retirando paulatinamente a "identidade". Este conceito é muito bem explicado pelo autor Michael J. Sandel no seu livro "Tirania do Mérito". Ele argumenta que desde essa altura, progressivamente, a nossa vida se tornou cada vez mais individualista, mais virada para o mérito, a partir do qual nasceu uma definição de vencedores e perdedores que hoje tem um impacto enorme na política, que se manifesta nestas coisas como o logótipo do governo português.
Uma das reflexões que mais gostei neste livro foi o facto de pela primeira vez encontrar uma explicação para o fenómeno de líderes patrióticos e xenófobos singrarem em comunidades tipicamente de esquerda. O primeiro exemplo é de Donald Trump no "Rust Belt", anteriormente chamado de "Steel Belt" (só esta mudança de nome diz muito sobre a zona, passou de "cinto de ferro" para "cinto ferrugento"). Esta zona, historicamente democrata, "virou" republicana, aquando da sua eleição. O segundo exemplo é o da "Red Wall" britânica (Muralha Vermelha), zona historicamente proletária e trabalhista, que votou massivamente a favor do Brexit. Além de exemplos anglo-saxónicos, há um outro livro chamado "Regresso à Reims" de Didier Eribon. Em registo autobiográfico, fala-nos de como no bairro proletário onde nasceu, as mesmas pessoas, que votavam Partido Comunista Francês nos idos anos 70 e 80, são hoje em dia fervorosas apoiantes da Frente Nacional de Le Pen.
No livro de Michael J. Sandel, há uma exploração muito interessante de como estes políticos capitalizam um sentimento de humilhação e de identidade. Estes políticos dão respostas ateando um chamamento às suas raízes, o que é até evidente nos seus slogans "Make America Great Again" (Tornar a América grande outra vez) ou "Take Back Control" (Ter o controlo de volta). Se repararem, nestes slogans não existem questões económicas envolvidas— são as questões culturais que são as mais importantes.
Em Portugal, esta discussão é agora visível no logótipo. Nas terras lusitanas, há um problema na discussão da nossa identidade. Não há debate sobre o que fomos e o que somos. Provavelmente a razão para isso é o facto de termos tido uma ditadura de pendor nacionalista até 1974 e nunca ter havido um esforço em democracia para revisitar o nosso passado. Qualquer discussão acaba em insultos: ou alegando que és um "facho" que quer glorificar os Descobrimentos ou que és um membro da esquerda "acordada" que odeia a história de Portugal.
Toda esta radicalização à volta da cultura nos dias de hoje é consequência de a cultura ser há muito tempo marginalizada. A cultura é de facto o que torna portugueses "portugueses" ou espanhóis "espanhóis" ou europeus "europeus". É o que cria um sentimento de comunidade e, numa sociedade tão centrada no indivíduo como na dos dias de hoje, a cultura é o parente pobre de toda a política, o que é errado e tem de ser alterado.
Por todas as razões demonstradas, a discussão gerada à volta do logótipo não é só relevante, como espero que tenha despertado a importância de discutir cultura em Portugal. Termino citando uma frase erradamente atribuída a Churchill, mas que ainda assim não perde relevância. Durante a guerra perguntaram-lhe porque é que não se desinvestia na cultura, ao qual respondeu "Então para que é que estamos a lutar?". Portanto, lanço o repto, está na altura de levar a sério a cultura em Portugal.
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