Sábado – Pense por si

João Paulo Batalha
João Paulo Batalha
13 de novembro de 2025 às 07:02

Quero ver o recibo

A EDP não é um Estado dentro do Estado. Portugal é que é um Estado murcho dentro da todo-poderosa EDP.

Qualquer um de nós perdia o sono se fosse avisado por uma autoridade judiciária de que tem a pagar 3035 euros em impostos. A EDP não está a dever três mil, está a dever mais de 335 milhões, mas dorme descansada, tranquila na sua confiança de que tem o Fisco, o Estado e o país no bolso.

Há uma semana, foi conhecida a decisão do Ministério Público no inquérito que investigava suspeitas de fraude fiscal no negócio da venda de seis barragens no Douro aos franceses da Engie. As suspeitas eram naturais: o MP concluiu que a EDP e a Engie travestiram de operação de “reestruturação empresarial” o que era na verdade uma simples – e óbvia – venda de ativos. Foi um estratagema para fugirem aos impostos. Apesar disto, decidiu arquivar o processo, concluindo que a marosca não era criminosa porque tinha sido feita às claras, sem dissimulação.

Esta notável mostra de desportivismo do Ministério Público face à evidente tentativa de ludibriar o Estado não esgotou, no entanto, o assunto. O despacho de arquivamento conclui que não houve crime, mas que o estratagema é abusivo e, portanto, a Autoridade Tributária tem de cobrar o IMT, o Imposto de Selo e o IRC devidos pela venda das barragens. Ao todo, são 335,2 milhões de euros, mais juros, que a EDP nos está a dever.

Ontem, a empresa reagiu finalmente à decisão, com um comunicado pacato em que promete “defender os seus interesses”. Num tempo em que vemos tantos visados por despachos judiciais gritarem a plenos pulmões pelos seus direitos, a placidez da energética é fácil de explicar: em Portugal não faltam poderes oficiais e oficiosos a defender os interesses da EDP. A empresa nem precisa de esforçar a voz; tem muito quem o faça por si e para seu benefício.

Logo depois de conhecido o despacho do Ministério Público, ninguém menos que o ministro das Finanças, no Parlamento, veio colocar água na fervura e avisar que é melhor não contarmos com esse dinheiro, pelo menos para já, porque é a AT que tem de decidir se cumpre ou não a instrução do Ministério Público para cobrar os impostos, e é a EDP que tem de decidir se os paga, ou se litiga. Tudo tranquilo.

O ministro não está sozinho na benevolência. A própria Autoridade Tributária é muito zelosa na defesa destes caloteiros fiscais: noutra saga que se arrasta há anos, sobre o pagamento de IMI, foi a AT a fazer tábua rasa de um parecer vinculativo do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 2006, que mandava cobrar o imposto imobiliário sobre as barragens e os centros de produção energética. Soubemos entretanto que a Autoridade Tributária, que também defendia a cobrança desse imposto, mudou de posição depois de ter reunido com a EDP. Deixou ir o processo ir para arbitragem privada, onde nem se deu ao trabalho de contestar os argumentos da energética e, com a inevitável decisão negativa num caso que não quis defender, justificou depois a isenção de IMI com a “jurisprudência” fixada pela sua própria desistência!

A impunidade fiscal da EDP é o produto de um conluio entre apetitosos interesses privados e insalubres servidores públicos, sempre dispostos a ignorar a lei ou, se necessário, a torcê-la ou a escrevê-la à vontade do patrão. A ordem para pagar agora emitida pelo Ministério Público é uma vitória para o interesse nacional e o Estado de Direito, mas eu quero ver o recibo do pagamento, porque está na cara que ninguém tem pressa de cobrar.

Em defesa do bem comum, desde o princípio desta história, não está o Fisco, nem o Estado, nem o Governo. Está um grupo de cidadãos desalinhados, o Movimento Cultural da Terra de Miranda que, ainda antes de concretizado o negócio das barragens, avisou as autoridades para a marosca que se preparava. Todos deixaram passar porque em Portugal manda quem pode, obedece quem deve.

Desde então, todos arrastam os pés para garantir à EDP a soberania imperial que se habituou a exercer sobre o país. Todos menos estes irredutíveis transmontanos da Terra de Miranda, gente justa e rija que nos dá uma lição de cidadania, em defesa de um território saqueado e de uma população abandonada – e que nos enche de vergonha pelo Estado a que chegámos.

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