A ofensiva de charme saudita mostra como se lavam reputações num mundo com mais fins que princípios.
Um passeio descontraído e uma conversa animada com Cristiano Ronaldo nos corredores da Casa Branca, prontamente divulgada em vídeo para as redes sociais. No mesmo dia, uma troca azeda de palavras com uma jornalista que ousou questionar o Presidente dos EUA sobre os seus negócios na Arábia Saudita e sobre a natureza daquele regime. Os dois episódios, separados por poucas horas, não são uma demonstração das famosas variações de humor de Donald Trump. Parecendo contraditórios, são na verdade duas marcas da mesma cultura: a política pública como expressão de negócios privados.
A visita de Ronaldo à Casa Branca, a semana passada, foi comentadíssima em Portugal, quase sempre de forma superficial e, francamente, tola. O capitão da seleção de futebol não é nosso representante político ou diplomático, não foi aos EUA em nosso nome, nem se suspeita que a mensagem que disse ter para Trump fosse sobre os danos das tarifas norte-americanas à economia portuguesa, onde poderão provocar uma quebra de quase um por cento no crescimento económico estimado para este ano. O craque madeirense foi recebido em Washington no mesmo dia que o seu empregador, o príncipe herdeiro da Arábia Saudita Mohammad bin Salman, e como parte da mesma missão de charme. A diferença é que Ronaldo não esteve na Casa Branca como protagonista, mas como produto.
O futebol é uma lavandaria prodigiosa de dinheiro, sim, mas também de reputações e de regimes. A mobilização de clubes, atletas e adeptos é uma forma simples de comprar boa vontade, respeitabilidade e uma ilusão de modernidade num mundo em que tudo é transacional. Para petroestados como a Arábia Saudita ou os emirados do Golfo, sai barata a troca. O Qatar percebeu isso, ao organizar um Mundial construído em cima dos corpos de centenas ou milhares de migrantes explorados ou sacrificados numa sangrenta campanha de relações públicas. O mundo lá protestou qualquer coisa, para tranquilizar a sua própria consciência, e depois foi ver a bola.
Neste contexto, Ronaldo não foi a Washington para deslumbrar Trump – mesmo que o Presidente americano tenha gracejado ter ganho alguns pontos junto do seu filho mais novo, fã do capitão português. Foi emprestar a sua popularidade para amaciar a impopularidade de Trump, sobretudo junto das audiências estrangeiras, mais sensíveis às paixões futebolísticas do que o americano comum. Cristiano Ronaldo, um bem transacionável, foi um presente do regime saudita a Trump, oferecido para amenizar más reputações e adocicar os negócios multibilionários que os dois líderes foram fechar – no caso, investimentos sauditas de mais de 600 mil milhões de dólares nos EUA, boa parte a partir de um fundo soberano avaliado
em perto de 900 mil milhões. Ao pé disto, um craque madeirense que perdeu a conta aos carros que possui é um remediado de classe média-baixa.
É a dimensão alucinante destes interesses, cujo controlo está inteiramente nas mãos do príncipe herdeiro saudita, que justifica que o líder da velha democracia americana interrompa uma jornalista que fazia perguntas incómodas, para ameaçar retirar a licença de emissão ao canal televisivo que a emprega. Foi o que fez Trump, sentado na Sala Oval ao lado de Mohammad bin Salman, a Mary Bruce, quando a repórter da ABC confrontou o príncipe com as conclusões das agências de inteligência dos EUA, que apontaram a bin Salman a responsabilidade pelo homicídio do jornalista Jamal Khashoggi, assassinado e esquartejado na sede do consulado saudita em Istambul. Trump considerou a pergunta impertinente e arrumou-a sem subterfúgios, culpando a vítima por ser “controverso” e concluindo que matanças de Estado são “coisas que acontecem”.
É este o verdadeiro preço de legitimar as grandes cleptocracias: não é comprarem uns quantos futebolistas queridos do público. É arrastarem as democracias (e quem nelas vive) para uma teia de cumplicidades podres que nos reduz a hipócritas sem remissão quando discursamos sobre a defesa dos direitos humanos e contamina a nossa economia com o vírus do negócio fácil e do dinheiro sujo. Trump não quer saber de desgraças, nem de leis nem de decência, quando se trata de ir à gamela saudita. Portugal, que não tem cão, caça com gato: o ministro da economia andou esta semana por Riade, esperançoso de que mais milionários sauditas venham cá comprar pastéis de nata. O Grupo Pestana já antecipa hotéis nas Arábias, também à boleia da marca CR7. Os tempos estão mais para fins que para princípios.
À Arábia Saudita basta-lhe ter o perfume doce de um bom álibi. É fácil: por cada Khashoggi assassinado e cortado às postas pelas suas opiniões críticas, a Arábia Saudita oferece ao mundo um Ronaldo, um grande evento, uma promessa de milhares de milhões a chover em investimentos e simpatias. Os povos livres vão-se deixando comprar, agradecidos. Porque somos mesmo assim tão baratos.
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