Sábado – Pense por si

Francisca Costa
Francisca Costa Gestora de projetos
12 de julho de 2024 às 07:18

Primeiro estranha-se, depois entranha-se

Este encerramento dos supermercados e superfícies comerciais não será o fim do mundo e está bem longe de representar o fim da sociedade de consumo, mas é um pequeno passo para aumentar o tempo de qualidade de muitas famílias.  

Numa altura em que se continua a debater os impactos da implementação de uma semana de trabalho de quatro dias, abre-se uma nova discussão sobre os dias de descanso. Esta versa sobre a abertura de supermercados e superfícies comerciais aos domingos e feriados. 

Para muitos portugueses, que se habituaram a visitar o centro comercial nos dias de descanso, quase como uma atividade social, esta mudança de paradigma pode parecer estranha. No entanto, há muito que este encerramento está normalizado nos países do norte da Europa como a Bélgica, Países Baixos, Alemanha ou Áustria. Nestes países, o domingo é dia de descanso para aproveitar com as famílias, em Portugal, esse descanso é só para alguns.  

O hábito de nos fecharmos nos centros comerciais faça chuva ou faça sol, tem-se vindo a arrastar à medida que o século avança, ao mesmo tempo que o comércio local se arrasta para as ruas da amargura. Organizamos a nossa vida profissional e familiar sabendo que a qualquer dia da semana poderemos recorrer a uma grande superfície comercial para suprirmos bens de primeira necessidade, ou até mesmo por puro ócio. Segundo um estudo realizado pela Associação Portuguesa de Centros Comerciais, as compras feitas ao fim de semana representavam em 2023, 34% da faturação destes estabelecimentos, estando as lojas de moda no topo da faturação registada, seguindo-se dos supermercados. 

Enquanto isso, os trabalhadores destes estabelecimentos gerem a sua vida ao sabor das folgas que vão tendo e das horas tardias a que chegam muitas vezes a casa. Ora conseguem um fim de semana de descanso para poder aproveitar com os seus amigos e familiares, ora têm que trabalhar para garantir que outras famílias têm um local onde podem alimentar os seus hábitos de consumo. 

Os dias de trabalho aos feriados e fins de semana representam uma remuneração adicional ao fim do mês que muitos trabalhadores tendem a priorizar em deterimento de tempo de qualidade passado com as suas famílias, o que denuncia a precariedade dos salários a que estão sujeitos. Paralelamente, as lojas e supermercados sediados nestes estabelecimentos continuam a obter lucros recorde ano após ano, quer em Portugal, quer noutros países da Europa. Assim, a ideia de que se perderá postos de trabalho perante a implementação desta medida torna-se irrelevante se esta for acompanhada de uma melhor gestão dos turnos rotativos e com melhores condições laborais para os trabalhadores que suportam a obtenção destes lucros.  

Para além dos impactos sociais inegáveis, esta medida vem com uma dose de impacto ambiental acrescida. O encerramento destes estabelecimentos aos domingos e feriados representa uma diminuição do consumo de energia, água e produção de resíduos, particularmente relevante perante a crise climática com que nos deparamos. 

Como os leitores podem depreender, vejo com bons olhos esta mudança de paradigma social e de hábitos de consumo dos portugueses. Nomeadamente depois de ter vivido nos Países Baixos e ter demorado apenas uma ou duas semanas a reorganizar os meus horários e a habituar-me a esta diferente realidade.  

Este encerramento dos supermercados e superfícies comerciais não será o fim do mundo e está bem longe de representar o fim da sociedade de consumo, mas é um pequeno passo para aumentar o tempo de qualidade de muitas famílias. Tal como Fernando Pessoa escrevia relativamente aos hábitos de consumo de um refrigerante que tinha acabado de chegar a Portugal nas primeiras décadas do século passado, "primeiro, estranha-se, depois entranha-se".  

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