Sábado – Pense por si

Ana Gabriela Cabilhas
Ana Gabriela Cabilhas Nutricionista e deputada do PSD
03 de março de 2024 às 10:27

Não há almoços grátis

As promessas de ganhos financeiros imediatos são o suficiente para que as pessoas estejam a entregar os seus dados mais valiosos e a prescindir da sua segurança.

Num momento decisivo para o País, a arena política é atrativa para os robôs da internet. Arrisco-me a dizer que durante esta campanha eleitoral cada um de nós já se terá cruzado com um bot, mesmo que não tenha consciência desse contacto. Há um grande número de bots que se fazem passar por humanos para produzir comentários automaticamente, disseminar desinformação, aumentar artificialmente a popularidade de uma pessoa ou difamar um candidato. Os bots oferecem posições políticas para os indecisos e, assim, concentram o poder de influenciar a opinião pública e de interferir propositadamente nas eleições.

As contas são cada vez mais sofisticadas e já têm nomes mais completos, fotografias e chegam a ser dinâmicas, interativas e coordenadas, tornando-se difícil distinguir bots de humanos reais. Para dar resposta a este problema, a Worldcoin assumiu o desafio de validar a autenticidade de um ser humano no mundo digital, através da captura de dados biométricos. Resta saber se esta aparente solução não nos levará a um problema acrescido e de maior dimensão. 

As grandes empresas tecnológicas têm a capacidade de resumirem fielmente a nossa vida com o histórico de pesquisas, sabem o que fazemos, do que gostamos, que compras realizamos e conseguem mesmo adivinhar coisas sobre nós. A inteligência artificial tem o potencial de conhecer a personalidade de uma pessoa com mais precisão do que o próprio companheiro. O passo seguinte com a recolha de dados biométricos é, para mim, assustador. Diria que para quem se preocupa com a defesa da sua privacidade e identidade, este futuro é distópico.

Em Portugal, a Worldcoin já terá recolhido os dados biométricos de 300 mil pessoas, através da leitura da íris, por ser o método mais eficaz para identificar uma pessoa. Assim, percebe-se a controvérsia e a desconfiança geradas sobre as questões de segurança associadas à recolha de dados pessoais. O reconhecimento da íris origina um código numérico que consegue comprovar que se trata de uma pessoa e não de um bot. As filas de espera nos stands da Worldcoin espalhados pelo País e os múltiplos convites de amigos para aderir ao projeto denunciam a sua popularidade. Em troca da fotografia da íris, as pessoas recebem 10 worldcoins que se somam às 6 que ganham quando descarregam a aplicação. Depois, podem transferir e aceder ao dinheiro de forma rápida e fácil, e numa quantia em euros que desperta a atenção.

As promessas de ganhos financeiros imediatos são o suficiente para que as pessoas estejam a entregar os seus dados mais valiosos e a prescindir da sua segurança. O aliciamento é tanto que não há tempo para uma reflexão ou ponderação, ou uma leitura cuidada dos termos e condições. Parece-me imoral que se explore as fragilidades das pessoas, quer pelos baixos rendimentos e a necessidade de obter dinheiro, quer pela baixa literacia digital e consequente ausência de sensibilidade da informação que estão a partilhar.

Nada é de graça e tudo tem um preço. Se nos estão a oferecer almoços grátis devemos desconfiar. Quem pagará a conta, mais cedo ou mais tarde, serão aqueles que estão a entregar a sua íris a um desconhecido. Não há forma de se saber se a informação é eliminada ou se os dados serão vendidos. Qual será a verdadeira intenção da recolha destes dados biométricos? A nossa privacidade é demasiado valiosa e poderá tornar-se um luxo. Valerá a pena beneficiar de almoços grátis ou de descontos a troco da pessoa que somos? Num futuro próximo, a fatura poderá sair muito cara.

Ana Gabriela Cabilhas é candidata às eleições legislativas pela Aliança Democrática

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