A psicóloga clínica explica como a síndrome de impostor pode ser incapacitante, tanto para homens como para mulheres, embora seja mais prevalente nestas últimas. Aponta o dedo a uma sociedade que não aceita o erro e lembra que tudo começa numa perceção pessoal que se vai transformando numa verdade.
"A verdade é que são muitos os dias da minha vida em que me sinto uma autêntica impostora. É certo que procuro sempre honrar a confiança de todos à minha volta, mas com frequência lá vou para ao sentimento de que poderia ter feito mais e melhor". Psicóloga clínica e fundadora da clínica da Transformar, é assim que Filipa Jardim da Silva partilha que se debate com síndrome do impostor, no livro que escreveu sobre o tema e que será lançado a 28 de janeiro. "É um guia prático e um recurso interativo. Há QR codes a remeter para pequenos vídeos, templates dos exercícios para se poder exportar, mas a ideia não é ser um livro teórico, daí também trazer partes da minha história, partes de histórias de casos concretos e reais", descreveu na entrevista àSÁBADO.
Alexandre Azevedo/Sábado
O que é isto da síndrome do impostor?
É este fenómeno psicológico que assenta sobretudo no grande medo de não sermos suficientes, de não sermos suficientemente bons, competentes e este medo é fortemente alicerçado pelas nossas experiências de vida, por uma cultura académica e organizacional extremamente competitiva, por esta nossa dimensão de rankings e agora ainda com o acrescento das redes sociais em que, aparentemente, somos aquilo que as nossas métricas externas nos dizem que somos, o número de gostos, o número de seguidores e, portanto, tudo isso fragiliza muito a nossa perceção e é daí que nasce, depois, esta designação.
E porquê que é mais vezes dito no feminino?
A prevalência é superior nas mulheres, não é exclusivo, mas, efetivamente, sabemos que é superior nas mulheres porque as mulheres têm desafios particulares. Assumimos muitos papéis numa sociedade com um histórico muito patriarcal e também a forma como somos educadas fomenta em nós esta procura da excelência e da perfeição. E esta utopia da perfeição é o maior dos combustíveis para a síndrome de impostor. Houve aqui esta escolha de não ser um livro que exclui homens, mas que me fez sentido pela prevalência e por ser mulher, de falar de mulher para mulheres e, no fundo, de profissional de saúde para o mundo.
Sendo psicóloga e admitindo que também se debate com a síndrome, como é que isso ajuda depois com as pessoas que a procuram?
Acho que esta humanização dos profissionais de saúde, de uma forma geral, é muito importante porque, em primeiro lugar, um dos fatores que mais alimenta a síndrome de impostor, numa psicóloga, neste caso, é precisamente esta não permissão para uma profissional de saúde mental ter fragilidades no campo da saúde mental. E isto é uma narrativa que compramos em muitos momentos e pensamos, 'não, eu sou uma impostora'. Se em algum momento tenho um lado que se sente inseguro, se já passei por uma depressão, se me debato com crises de ansiedade, se tenho insónias, como é que vou ajudar alguém se eu própria me estou a debater com esse problema? E aqui a questão é que, quando nós nos debatemos com algumas problemáticas, acho que isso, em primeiro lugar, nos traz uma humanização adicional e uma empatia crescente. Além de que podemos em, algum momento, sentir algumas das dores das pessoas que nós vamos procurar ajudar e também experimentar em nós, não só como teóricos, mas neste caso como praticantes, as ferramentas e as estratégias que estamos a colocar em prática. E para mim, enquanto profissional, de forma geral, a coerência e a consistência são dois valores muito importantes. Por isso fez-me sentido também trazer este lado muito humano e vulnerável de vários momentos em que já me debati com esta síndrome e até correlacioná-los com momentos da nossa vida em que podemos estar mais propensas a isso, como foi o meu caso, um pós-parto, com todas as oscilações hormonais e os lugares de muita vulnerabilidade onde vamos, ou ter, de repente, uma carreira de empresária não tendo essa base de formação e, portanto, enquanto profissional de saúde, estou entre mulheres, mas no mundo do empreendedorismo e da gestão já não e são alguns gatilhos que depois nos vão disparando estas perguntas de 'será que faço parte, será que sou suficientemente competente?'
A carregar o vídeo ...
Pensou nos riscos que poderia correr a nível profissional quando decidiu assumir essa condição?
Sim, é um risco, assumido, consciente. Luto muito que este livro dê início a um movimento de "impostora nunca mais", no sentido de não questionarmos o nosso valor. Claro que nos podemos questionar naturalmente, isso é um exercício muito importante, mas não questionarmos o nosso valor e não sobretudo de uma forma tão grosseira e fácil como o fazemos hoje em dia, perante um comportamento ou um momento menos bom. Agora, ao mesmo tempo, também me parece que nós vamos ser sempre impostores aos olhos de qualquer pessoa, se ela assim o quiser ser. Ou seja, se para alguém o ser competente é o ser perfeita, lá está, voltamos aqui à utopia da perfeição, então realmente não vou cumprir com nenhuma das expectativas em nenhuma das áreas. E portanto, acho que mais pessoas de todos os segmentos de atividade, jornalistas, professores, fotógrafos, profissionais de saúde, todas as pessoas, devem trazer esta ideia de que o sucesso não é um sinónimo de não terem existido falhas e erros no caminho, de que eu ter a coragem de subir a um palco não implica que eu não tenha alguma ansiedade e que essa ansiedade até me possa dar foco, que o facto de ter conseguido algumas conquistas não quer dizer que não houve medo e receio nesse percurso, e portanto, para mim, essa vulnerabilização aproxima-nos e mostra-nos que nós estamos, no fundo, todos no mesmo barco.
Qual é a margem entre nos sentirmos impostores e tentarmos contrariar isso, e a margem de que, efetivamente, aquilo que nos está a ser proposto não é para nós e também temos que saber dizer não?
Há uma coisa que é esta autoanálise e auto-observação que vamos fazendo momento a momento de quem é que eu sou, que competências é que tenho, o que é que se identifica com os meus valores e, em muitos momentos, posso, efetivamente, fazer esta escolha de esta proposta, por exemplo, não se alinha com os meus valores e a minha escolha vem, precisamente, de uma análise, de um raciocínio e de uma reflexão que é feita de um lugar de liberdade, de confiança. Portanto, eu digo que não, não porque não me acho capaz, mas porque acho que ou não é o momento mais indicado para mim, porque me quero capacitar ainda mais, ou porque não está, suficientemente alinhado com os meus valores, com aquilo que procuro, com o meu perfil, mas a minha resposta negativa vem de um lugar de confiança. Quando as minhas respostas negativas vêm sempre deste lugar de até gostava de aceitar, mas vai correr mal, porque ainda não tenho a formação que deveria ter, porque ainda não tenho o estatuto, porque ainda não tenho os anos de experiência. Portanto, quando a minha recusa e as minhas respostas negativas vêm de um lugar de descrença no meu valor e de baixa autoestima e de desconfiança até da minha competência, essa é uma grande diferença. Portanto, um não que vem de um lugar de confiança e autoconhecimento é uma coisa, um não que até gostava que fosse um sim e, portanto, que vem desta baixa de autoestima é um alerta que pode ser aqui um indicador de síndrome de impostor.
Quais é que são as principais diferenças entre uma mulher com síndrome de impostor e um homem?
As mulheres, neste caso, começando logo pelo início, meninas, desde muito cedo conhecem o conceito de perfeição e de excelência. E, portanto, normalmente as raparigas crescem a achar que a excelência se conquista pelo esforço. E, portanto, nas famílias e na sociedade acabam por ser muito premiadas quando são bem comportadas, estão bem arranjadas, bem penteadas, limpinhas, sossegadinhas e, sobretudo, são muito premiadas quando estudam muito, quando se esforçam muito, quando são muito amigas. Esta questão do esforço por um lado e da perfeição por outro, uma perfeição que tem este preço, eu se calhar não posso brincar tão livremente que é para estar toda limpinha e arrumadinha e penteada, e acaba também por desenvolver este alerta em relação aos outros. Estou estou a brincar e, de repente, penso como é que o meu vestido está, como é que os outros vão achar que o meu vestido está. E, portanto, cresço sempre muito com este foco do que é que os outros acham sobre mim e cresço depois a ficar muito codependente deste reforço positivo externo. Portanto, procuro esse elogio e, em algum momento, preciso desse elogio e dessa revalidação para sentir que sou boa.
Os rapazes é um bocadinho diferente. Estamos a generalizar, mas de uma forma geral, acabam por ser mais protegidos desta questão da perfeição. E, curiosamente, a ideia de sucesso nos rapazes está mais associada a uma competência inata. Ou o rapaz é inteligente e bem-sucedido ou não é. Não tem traços para isso. Acaba por não estar tanto associado ao desempenho e ao esforço, mas sim a qualquer coisa que ele tem ou não tem de base. E, depois, como não há tanto incentivo entre os rapazes, pelo contrário, muitas vezes até há uma discriminação e uma punição por um rapaz verbalizar o que sente, o que pensa e mostrar a vulnerabilidade, há muitos homens que chegam à vida adulta a trazer problemas, mas sem saberem dar nome ao que é que está a gerar aquilo.
É mais fácil para uma mulher fazer um caminho de desenvolvimento pessoal e até em conversas com pares chegar à vida adulta aos 20, aos 30, aos 40 anos e dizer, olha, eu acho que tenho isto por causa de todas estas situações. Um homem, provavelmente, vai chegar com o foco no problema, mas com menos pistas do que estará a justificar aqueles padrões mais problemáticos.
Todas as pessoas devem trazer esta ideia de que o sucesso não é um sinónimo de não terem existido falhas e erros no caminho
Filipa Jardim da Silva, psicóloga
Sabendo que podem começar logo na infância e na adolescência, que cuidados se devem ter nestas etapas da vida?
Essa diferenciação, para mim, foi importante fazer no livro e, portanto, há um capítulo em que falo sobre as várias faixas etárias e como é que a síndrome de impostor se pode manifestar em todas elas e até dou alguma ideias e sugestões do que é que podem ser estratégias a implementar em termos de sociedade, de empresas, de escola, precisamente nesta lógica de conseguirmos prevenir assim que possível em mais contextos. Portanto, precisamos de premiar mais as competências e menos os resultados. E isto significa que devo premiar mais o processo e não estar focada apenas e somente no resultado. Posso ter uma criança que está numa competição de basquetebol, por exemplo, ou de judo, independentemente dela ganhar ou perder, eu, enquanto professor, treinador, pai, mãe, quero colocar o foco e destacar como é que esta criança esteve, efetivamente, nesta competição ou neste processo. Com que foco é que ela esteve, com que generosidade, com o esforço que ela possa ter trazido, a capacidade de resistência à frustração, porque perdeu o primeiro combate, mas depois levantou-se e ganhou o segundo. Portanto, quando colocamos mais foco nas competências e no processo do que nos resultados, estamos a proteger de um desenvolvimento de síndrome de impostor.
Depois, naturalizarmos o erro. Vivemos numa sociedade que diaboliza o erro e que o associa a um fracasso, a uma fraqueza e, portanto, precisamos de elogiar e naturalizar o erro como sendo algo essencial para aprendermos e nos superarmos. Sem erro não há um processo de criatividade, não se consegue criar nada de novo se não experimentarmos algumas vezes e, pelo caminho, com certeza, vamos falhar. Em vez de termos os rankings de mérito, quantitativos, quem é que tem melhores notas, se calhar também deveríamos ter outro tipo de rankings de quem é que tenta mais vezes e arrisca mais vezes, quem é que também tem mais esta capacidade de ajudar o outro. Colocarmos aqui também mais foco em competências emocionais, sociais, pessoais e não só no dito QI mais tradicional de sou boa a fazer contas, sou boa a ler. Portanto, isso são duas premissas importantes.
E depois, num terceiro ponto, esta modelagem que precisa de começar pelos adultos. Quando os pais, os familiares, os professores não desenvolvem em si próprios estas competências emocionais e não se permitem também vulnerabilizar e partilhar com as crianças algumas das suas dificuldades e até dizer algo como, por exemplo, expliquei ao meu filho, 'olha, este livro que tu estás a ver não foi escrito em três dias, nem numa semana. A mãe começou a escrever este livro há dois anos e este livro agora está a sair. Não basta gostar'. Portanto, partilhar no dia-a -dia estes nossos episódios e experiências é muito importante com os mais novos.
Há também esta ideia de que isto são crenças que temos na nossa cabeça e depois no dia-a -dia conseguimos ultrapassar. Há quem consiga disfarçar, mas pode ser incapacitante?
Isto sem dúvida que pode ser incapacitante e como dizia, o verbo é disfarçar. E o disfarçar é sempre uma remediação. Ou seja, aquilo que nós acreditamos, impacta-nos profundamente, vai modelar a nossa perceção de tudo. A nossa perceção sobre nós, sobre os outros. Portanto, vamos imaginar que todos nós temos umas lentes com as quais interpretamos o que acontece. Porque no fundo a realidade é sempre um resultado de uma perceção muito individual. Depois acabamos por tentar ter uma perceção partilhada de algumas partes e daí depois termos uma realidade comum. Portanto, se o tom da minha lente é eu dizer que não tenho valor suficiente ou que vão descobrir que não tenho valor suficiente ou mérito suficiente, naturalmente que isto vai tornar a minha lente, por assim dizer, mais cinzenta. E isso vai interferir em todas as interpretações e leituras sociais que vou fazer. Vou interpretar expressões faciais, frases, diálogos, resultados, sempre desta maneira bastante enviesada. Depois há um momento em que este tipo de pensamento e de crenças se torna uma verdade para nós, e esse é que é o problema, perdemos a perceção de que isto foi um pensamento e em algum momento torna-se uma verdade inquestionável sobre nós. Isto vai interferir nos nossos níveis de cortisol, na nossa pressão arterial, na capacidade de segregar insulina, na nossa qualidade de sono, no nosso apetite. Portanto, na nossa capacidade de foco e atenção. Há aqui depois uma interferência global e por isso é que nós podemos adoecer a partir desta síndrome que muitas vezes acaba por ser o ponto de partida para um campo fértil de transtornos de humor, de ansiedade, de comportamento alimentar ou mesmo de comportamentos aditivos.
A ideia de sucesso nos rapazes está mais associada a uma competência inata. Ou o rapaz é inteligente e bem-sucedido ou não é.
Filipa Jardim da Silva, psicóloga
Uma vez sofrendo de síndrome de impostor, é uma coisa que pode ser ultrapassada ou é um trabalho contínuo?
É um trabalho contínuo e acho que é importante termos essa perceção que é um bocadinho como o nosso tipo de sangue. O nosso tipo de sangue não muda, mas consoante a maneira como nos vamos alimentar e o nosso estilo de vida, podemos no fundo responder melhor às nossas necessidades-base orgânicas. E portanto, quanto mais nós percebemos que vivemos todos, homens e mulheres, crescidos e menos crescidos, nesta era deste grande paradoxo em que por um lado temos uma enorme abundância de tudo, de oportunidades, de canais de comunicação e ao mesmo tempo temos uma grande escassez de relações de qualidade, de recursos, de uma atenção focada. Portanto, diria que a partir do momento em que temos essa consciência de que há fatores culturais e organizacionais e educativos que vão também continuar a promover o maior risco de desenvolvermos a síndrome de impostor, além de uma prevalência de base, é um trabalho contínuo.
E acho que isso também nos ajuda a gerir expectativas. As competências emocionais, cognitivas, o nosso autocuidado não é um processo com um dia de início e um dia de fim. E aí podemos ir buscar a nossa experiência com a tecnologia. Nós não carregamos o nosso smartphone um dia e nunca mais o carregamos. Nós não carregamos o nosso computador um dia e nunca mais o carregamos. Portanto, tudo isto vai carecendo aqui de um investimento contínuo, mas que não tem que ser utópico.
Aconselharia quem sofre de síndrome do impostor a procurar ajuda e a trabalhar essa dificuldade?
Há muitas maneiras de a pessoa começar a dar passos no sentido de sair deste lugar de dor e de síndrome de impostor. Em primeiro lugar, ela está a criar esta curiosidade sobre 'porquê é que me comporto desta maneira, porquê é que penso da maneira como penso, onde é que eu aprendi a pensar isto sobre mim, com quem é que eu aprendi isto, será que há outras maneiras de eu pensar sobre mim? Eu falo comigo como falo com os outros? Eu critico-me a mim da mesma forma como critico os outros? Como é que é o meu equilíbrio entre crítica e elogio?' Portanto, quando nós trazemos curiosidade e reflexão, acho que esse é um primeiro passo muito importante porque nos expande a consciência de nós próprios. E nesse caminho de expansão e de atualização e de curiosidade, podemos ouvir podcasts, ler livros, também numa ótica de desenvolvimento pessoal, podemos ler artigos online, podemos falar com pessoas, podemos ir a conferências, podemos ouvir programas de rádio, portanto, há muitas formas de nós nos irmos convidando a desafiar a maneira como pensamos. E nesse caminho, efetivamente, pode haver um momento em que nos sintamos preparados e com capacidade de fazer esse investimento, que é de ter aqui um treinador de emoções e de fazer esse investimento num profissional de saúde mental que nos vai ajudar a dar um salto qualitativo muito grande.
Para poder adicionar esta notícia aos seus favoritos deverá efectuar login.
Caso não esteja registado no site da Sábado, efectue o seu registo gratuito.
A ideia de que a IA pode tomar conta do mundo pode parecer cinematográfica mas é cada vez mais real. Contudo, a Apple divulgou um estudo no qual afirma que todos este modelos não pensam, apenas memorizam.
"Às vezes precisamos de lembrar que há diferentes formas de medir o tempo. Há o tempo dos adultos, cronometrado e urgente. E há o tempo das crianças, que se mede em sorrisos e abraços", explicou a juíza Dr.ª Isabel Moreira.
Agora existem os neo-fascistas. E Steve Bannon é um deles. E a sua influência global é enorme. E em Portugal os seus discípulos não se encontram apenas no Chega.
Para perceber se uma pessoa gosta de si ou não, perceba se ela quer estar ou não perto de si. Outra pista é o tempo que demora a responder a uma mensagem, email ou chamada, o tempo indica a importância que tem para essa pessoa.