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O pequeno clube que jogou como sendo a seleção brasileira na Coreia do Norte

Luana Augusto
Luana Augusto 28 de fevereiro de 2024 às 07:00
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Em 2009, um jogo entre a Coreia do Norte e a suposta seleção do Brasil foi “vendido” no país asiático como um encontro histórico, tendo reunido milhares de militares. Porém, em campo estava o Atlético Sorocaba, um pequeno clube brasileiro.

Em 2009, a Coreia do Norte anunciou que iria receber no estádio Kim II-Sung, em Pyongyang, a seleção do Brasil. Aliás, uma fotografia tirada momentos antes do jogo mostrava uma placa eletrónica que dizia: "PRK O-O BRA" - e foi com este resultado que o jogo terminou. Aos norte-coreanos, só não foi revelado um "pequeno" pormenor: a equipa brasileira em campo não era a seleção que nesse ano contava com nomes como Káká ou Ronaldinho, mas sim o Atlético Sorocaba. 

Eduardo Efrain / Getty Images

A equipa de futebol que havia sido anunciada como a seleção brasileira era, na verdade, um pequeno clube de uma cidade localizada a 80 quilómetros a noroeste de São Paulo. O Atlético Sorocaba era uma equipa constituída meramente por trabalhadores apart-time.

"Ficou claro que o regime norte-coreano queria que a palavra ‘Brasil’ aparecesse ali", relatou Waldir Cipriani, um dos organizadores do jogo, aositedesportivo The Athletic.

À época, nenhuma equipa fora da Confederação Asiática de Futebol havia jogado na Coreia do Norte. O Atlético Sorocaba, que existia desde o início da década de 1990, nunca tinha sequer passado da terceira divisão nacional, e os seus jogos raramente atraíam muitos adeptos. "A Coreia do Norte estava interessada em adquirir experiência no futebol latino-americano", explicou o antigo vice-presidente do clube Waldir Cipriani.

Quando chegou a hora da partida para a Coreia do Norte, muitos dos jogadores nem sabiam sequer que estavam a caminho do território norte-coreano. A maioria acreditava que o plano era jogar na China e na Coreia do Sul e que seria um passeio divertido que ajudaria na preparação para a temporada de 2010. "Eu nem sabia que existiam duas Coreias diferentes", recorda o antigo lateral-direito Leandro Silva.

Ainda assim, Waldir Cipriani descreveu a oportunidade de ir a Pyongyang como "encantadora, uma novidade". O senão era que nem todos partilhavam do mesmo entusiasmo. "A minha primeira reação foi de choque e medo", lembrou Leandro Silva. "Tentei saber um pouco sobre a Coreia do Norte, mas só consegui ver notícias más. Pobreza, falta de liberdade, escassez de alimentos. Todos diziam que era um país em guerra, fortemente armado."

À chegada, a receção da equipa no aeroporto também não foi a mais calorosa. Os jogadores foram logo convidados a entregar os seus aparelhos eletrónicos. "Havia soldados por toda a parte. Parecia que estava a chegar a um campo de concentração", relembrou o treinador do Atlético, Edu Marangon, em entrevista ao canal de televisão brasileiro Record TV.

"Havia homens agachados a fumar cigarros. Havia pessoas a trabalhar nas plantações e nenhuma criança brincava. Dava para ver no rosto das pessoas que as suas vidas eram dedicadas ao trabalho. Foi muito regulamentado e muito sombrio. O que vimos foi uma verdadeira ditadura", acrescentou Leandro.

Já no campo, enquanto davam uma espreitadela pelo espaço, os jogadores foram sempre seguidos pelas autoridades norte-coreanas, que utilizavam longos casacos. "Estávamos sempre acompanhados", disse o o jogador. "Não poderíamos fazer nada sem escolta. Se fosses à casa de banho, alguém iria seguir-te e esperar-te do lado de fora da porta."

Ainda que a situação fosse considerada engraçada para alguns futebolistas, para o treinador a experiência foi também profundamente perturbadora. No segundo dia, o Atlético treinou durante duas horas no campo artificial do Estádio Kim Il-Sung, mas durante esse tempo, os jogadores foram sempre acompanhados pelos olhares dos adversários e pela comissão técnica. Quando chegou a vez do treino da Coreia do Norte, o Atlético foi convidado a sair.

Na tarde seguinte, quando ia decorrer o tão esperado jogo, os brasileiros foram confrontado com quase 100 mil espectadores - um número com o qual não estavam habituados a lidar. "Quando eles viram o estádio com 80 mil pessoas dentro e mais 20 mil lá fora, bem… pode imaginar a reação deles", disse Cipriani.

Alguns dos jogadores acreditavam que a quantidade de espectadores era justificada pelo número de brasileiros que tinham aparecido para assistir ao jogo, mas rapidamente chegaram à conclusão que o jogo tinha sido "vendido" ao povo como um encontro histórico com a nação mais bem sucedida do Campeonato do Mundo.

"Não foi o tipo de energia que se recebe dos fãs dos outros países, e não houve uma grande mistura de cores. Eram todos militares, todos com uniforme verde escuro", disse Leandro Silva. "Dissemos: ‘Se vencermos este jogo, talvez não saiamos daqui vivos’. Era um estádio cheio de soldados! Achámos que um empate deixaria todos felizes."

O jogo terminou 0-0. Dois dias depois, durante uma refeição comemorativa, Sun Myung Moon, um líder religioso coreano mais conhecido como Reverendo Moon, que comprou o clube brasileiro, disse que "os norte-coreanos teriam ficado muito zangados se tivéssemos vencido", relembrou Cipriani.

Nos anos que se seguiram o Atlético fez mais três viagens até à Coreia do Norte e Sun Myung Moon acabou por ser culpado por fraude fiscal nos Estados Unidos, tendo passado 13 meses na prisão. Acabou por morrer em 2012.

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