Sábado – Pense por si

Portugal já produz proteína, cremes e roupa feita a partir de algas e lixo do mar. É o futuro do planeta descarbonizado

Projetos são apoiados pelo Blue Bio Value, um programa da Fundação Oceano Azul para promover a bioeconomia azul e que já gerou 6,7 milhões de euros em receitas, nos últimos seis anos. Há soluções ecológicas para quase todas as áreas.

Alguma vez pensou em ter um creme facial que tem por base microalgas, ou uma t-shirt preta que utilizou uma coloração extraída de algas? Ou até comer sushi feito com peixe celular desenvolvido em laboratório em vez de salmão? Além de serem soluções desenvolvidas através de biotecnologia azul, são opções que contribuem para a descarbonização do planeta.

Microalgas nos balões
Microalgas nos balões Sérgio Lemos

Tudo isto são soluções desenvolvidas com o apoio da Blue Bio Value (BBV), um projeto da Fundação Oceano Azul, fundado em 2018, com a visão de "acelerar o mercado da biotecnologia azul e contribuir para que ele seja incluído nos grandes mercados". Tendo já angariado 22,8 milhões de euros em capital e gerado 6,7 milhões de euros de receitas. Nos resultados dos primeiros seis anos de atividade registam-se 299 postos de trabalho a tempo inteiro criados pelas startups que participaram no BBV.

É através deste projeto que startups nacionais e internacionais, ou centros de investigação que apresentem soluções baseadas nas propriedades de recursos marinhos, como por exemplo, algas, conchas, recifes e esponjas do mar e que contribuam para a descarbonização do planeta, possam receber financiamento, apoio ou networking

"Vivemos numa economia que é linear, extrativa, olhamos para a natureza como se fosse infinita", explica Maria Feio, project manager da BBV, à SÁBADO, acrescentando que esta depende de que "tenhamos sempre que ir ao mar recolher os recursos vivos". Defende, por isso, que a solução está na biotecnologia azul que ajuda a "encontrar o que melhor há no mar e replicá-lo em laboratório". Por exemplo, através da extração de uma amostra de uma esponja do mar, levando-a para um laboratório e avaliando-a, é possível retirar as suas propriedades, que neste momento são utilizadas na medicina e no tratamento para o cancro, replicá-las "infinitas vezes", sem ser necessário regressar ao mar e danificar ecossistemas.

Maria Feio
Maria Feio Pedro Catarino

Entre os projetos apoiados pelo BBV, Maria Feio dá o exemplo da startup Blue Blocks que utiliza algas invasoras, com um "comportamento que magoava o ecossistema", para revestimentos de cozinhas ou salas, o que "acaba por ser uma alternativa que quando descartada não tem um impacto tão mau no ecossistema".

A área de Aceleração da BBV já lançou 115 startups de 33 países diferentes, em vários setores, desde a alimentação, à cosmética e a farmacêutica. A nível nacional existe o programa Ideação que trabalha com projetos ainda na fase de pesquisa e desenvolvimento, despertando interesse nos investidores sobre como a investigação "pode passar a ser um produto que pode entrar no mercado e ter um impacto descarbonizador".

O potencial das microalgas

Entre os projetos que estão atualmente na fase de Aceleração, está a Algae 4 Future (A4F), que presta serviços tecnológicos a empresas que produzem microalgas. Luís Costa, chief scientific and sustainability officer da A4F, explica que fornecem os seus serviços às empresas que vencem o programa, quer seja a utilização de laboratórios, "para ajudar essas empresas que têm uma ideia, mas não têm instalações a fazer os primeiros testes", ou serviços de consultoria ou a equipa de engenharia ou sustentabilidade.

Por exemplo, estas empresas podem enviar para a A4F uma estirpe que tenham desenvolvido, que depois será produzido à escala laboratorial ou à escala "piloto" ou podem usufruir dos seus serviços analíticos e especializados, para identificar se há toxinas nas algas.

Luís Costa
Luís Costa Sérgio Lemos

Luís Costa explica que as microalgas são como se fossem "plantas microscópicas" e fazem parte de um mundo "que nós não nos apercebemos que existe", sendo que cada célula tem cerca de sete a 10 micras, ou seja, "é mais fino do que um cabelo". O processo desde que a célula da microalga é recolhida e está no laboratório a ser reproduzida, até à "primeira colheita em escala industrial" pode demorar entre quatro a seis meses, dependendo do tipo de microalga. "Umas crescem mais depressa, outras mais devagar", mas também depende da altura do ano, uma vez que elas crescem e desenvolvem-se mais rápido quando há mais luz solar. 

investigadora microalgas
banco de células
Alboteca de culturas
trabalhador A4F
Fotobiorreatores tubulares
investigadora microalgas
banco de células
Alboteca de culturas
trabalhador A4F
Fotobiorreatores tubulares

O processo do desenvolvimento de uma cultura de microalgas começa com uma única célula microscópica. A partir dessa célula obtêm-se colónias até haverem células suficientes para se poder passar para uns frascos pequenos. "É um bocado como fazer iogurte ou pão com massa mãe, guardamos sempre um bocadinho de massa mãe para depois começar a fazer o pão seguinte", compara o responsável. À medida que a cor do líquido vai ficando mais escuro, as colónias vão ficando mais concentradas, é neste momento que a matéria vai ser colocada num balão de vidro muito maior, e onde vai permanecer durante "alguns dias ou semanas", até ficar concentrado de novo. Depois, a cultura é "entornada" para as mangas plásticas, já ao ar livre, onde fica durante duas ou três semanas até ficar ainda mais concentrada. Finalmente passa para fotobiorreatores tubulares onde é mais fácil absorver a luz solar.

Em Portugal, Luís Costa revela que o cultivo de microalgas é um setor forte, "reconhecido dentro da Europa e não só" mas há limitações. É no desafio de fazer estes projetos prosperar que a existência do programa Aceleração do BBV acaba por ser importante, pois "cria as condições para virem [para Portugal] empresas estrangeiras, ideias estrangeiras e terem em Portugal um ecossistema para poderem fixar-se e prosperar". 

Algumas destas microalgas estão muito presentes no dia-a-dia. A microalga Dunaliella, que tem um aspeto cor de laranja, é o que faz com que as salinas fiquem com aquela cor alaranjada ou cor de rosa. Luís Costa explica que "com altas temperaturas, e com alta radiação solar" ela tem de se defender do sol o que faz com que produza beta-caroteno, "o protetor solar dela". Isto significa que tem um "potencial biotecnológico", sendo usado então em protetores solares, mas também para cremes antioxidantes porque "retêm a humidade e muitas vezes estimulam o crescimento das células e promovem firmeza e elasticidade". 

A microalga verde-azulada Spirulina utiliza-se muito no setor da alimentação humana "como fonte de proteína para os desportistas", tendo também propriedades antioxidantes. A Haematococcus, com um aspeto vermelho, produz o pigmento astaxantina, que não só dá a cor à carne do salmão, "mesmo na natureza", mas por ser "um dos antioxidantes mais poderosos conhecidos, tem um poder biológico bastante interessante". É utilizado na recuperação muscular de atletas de alta competição e vem em formato de pequenos comprimidos softgel.

O futuro de acordo com a biotecnologia marinha

"O nosso mar não tem imensa quantidade de biorrecursos (peixe, algas, conchas, etc.)" explica Maria Feio, que "têm muita qualidade, são muito ricos e os centros de investigação acabam por ter no nosso oceano um biobanco vivo". Neste momento, um dos projetos vindo do programa Ideação está no processo de desenvolver uma propriedade encontrada nas algas para ser incluída numa vacina para peixes em aquacultura através de ração.

No setor da cosmética, a Deep Blue Biotech, uma startup que apesar de estar no início, está à procura de um substituto para o ácido hialurónico com base em algas, e não em combustíveis fósseis. Ainda a Body Ocean, que nasceu nos Açores, desenvolve cremes faciais regeneradores com base em algas. No setor da alimentação há startups que trabalham no desenvolvimento de substitutos à proteína do peixe, como peixe celular desenvolvido em laboratório para substituir, por exemplo, o salmão que está em sobre procura por causa do sushi. Outras desenvolvem alternativas para tornar o setor da aquacultura mais sustentável, como a KPI Pro que utilizou as larvas que atacam o salmão nos tanques e nas redes na Noruega, extraindo-as, explorando o seu potencial e aproveitando-as para a alimentação do próprio salmão. 

No setor têxtil, Portugal é um dos países que lidera esta revolução de biotecnologia quer através de coloração, quer a nível das fibras. A startup ERLab e Circular Ocean criam as fibras através do lixo que recolhem do mar, incluindo cascas de ostras que são ricas em cálcio. 

Existem ainda soluções que contribuem para a mitigação da poluição nos oceanos, quer seja de plásticos, quer de derrames de petróleo. A Flexi, nascida no Reino Unido mas recentemente instalada em Portugal, desenvolveu uma alternativa ao plástico, um bioplástico feito de algas. Ao utilizar estas alternativas "estamos a contribuir para a redução da poluição de plásticos no mar". Maria Feio nota também que já há startups que "contribuem para a redução do impacto sempre que há derrames de petróleo no mar, e para absorver o petróleo em maior quantidade possível". 

corais aquário
biorecursos marinhos
raia oceanário
corais aquário
biorecursos marinhos
raia oceanário

Como resultado destas soluções, no futuro "vamos ter um impacto muito menor no planeta se a indústria se alinhar e incluir este tipo de soluções que descarbonizam". À medida que forem incluídas nos seus respetivos setores, o seu preço tornar-se-á mais acessível e chegará a mais pessoas, desde os setor têxtil, cosmético ou construção, à forma como nos alimentamos. "Estamos muito habituados a pensar que a proteína que temos de comer vem da carne ou do peixe", mas outras alternativas como as algas ou os bivalves apresentam níveis ricos de proteína e acabam por ser mais sustentáveis. Por exemplo, uma aquacultura de bivalves absorve imenso CO2 e contribui não só para a descarbonização geral, mas ainda filtra a água do mar. 

Segundo Maria Feio, quanto mais soluções houver, menos iremos depender de setores que ainda precisam do petróleo ou que emitem emissões no processo de fabrico e de desenvolvimento. Apesar da biotecnologia marinha ser uma indústria em "crescimento", cabe às empresas adotar estas soluções de forma a existirem mais produtos a um preço acessível.

"Para o cidadão comum é suposto ser uma coisa que não tenhamos de escolher", explica a project manager da BBV. "Para as soluções escalarem de uma maneira saudável e sustentável, não cabe ao consumidor escolher pagar um valor maior e decidir entre uma camisola que é preta porque veio de um químico ou que é preta porque foi uma cor extraída das algas".