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Filha de Gisèle Pelicot diz que o pai "não tem doença nenhuma"

Vanda Marques
Vanda Marques 07 de fevereiro de 2025 às 07:00
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Caroline Darian em entrevista à SÁBADO confessa que sabe que foi uma das vítimas de Dominique Pelicot. Acredita que as penas foram leves e que as vítimas não podem ter medo de denunciar.

O dia em que descobriu que o seu pai tinha drogado a mãe para que fosse violada por estranhos nunca lhe sairá da memória. "Lembro-me de ficar completamente congelada", conta à SÁBADO, Caroline Darian. "Foi muito traumático. Muito traumático", desabafa.

A filha de Gisèle Pelicot é determinada a falar, não recua um segundo perante as perguntas mais difíceis. Sente que tem uma missão. E que, se a sua história horrível puder ajudar uma vítima que seja, já valeu a pena. Escreveu o livro E Deixei De Te Chamar Papá, editado pela Guerra & Paz, como um testemunho "da verdade".

Em formato de diário, relata o que aconteceu nos dias em que a família descobriu que o pai tinha na sua posse mais de 20 mil fotografias e produções pornográficas pessoais, "mais próximas da barbárie do que de simples fantasias sexuais." A polícia avisou Gisèle e os filhos Caroline, David e Florian, dos acontecimentos que começaram em 2013. "O vosso pai tinha por hábito drogar regularmente a vossa mãe, ao longo de pelo menos oito anos, para a violar. Ele filmava-a e expunha tudo na Internet." Os detalhes do caso só tornavam os factos ainda mais chocantes. Dominique Pelicot teria contactado pelo menos 53 pessoas, desde setembro de 2013, para as convidar a irem a sua casa abusar da mulher, Gisèle Pelicot. A polícia explicou ainda que não havia qualquer tipo de compensação financeira. 

Caroline Darian relata os eventos do dia 3 de novembro de 2020 quando soube dos pormenores do caso. A sua vida nunca mais voltou a ser a mesma. "O último grau de perversidade: o meu pai, sempre atolado em problemas de dinheiro, não fazia negócio com a minha mãe. Por isso, agia apenas para seu próprio prazer." Mas quando descobriu fotografias suas tiradas pelo pai em roupa interior, começou a interrogar-se: Será que ela era uma das vítimas? Em entrevista à SÁBADO assegura que, apesar de não existirem provas, tem a certeza que foi abusada. Depois da publicação do seu testemunho, fundou a associação #MendorsPas: Stop Chemical Submission: Don’t Put Me Under para lutar por um melhor tratamento das vítimas e pela formação dos profissionais de saúde.

Porque é que decidiu escrever o livro E Deixei de te Chamar Papá?

A ideia de escrever surgiu-me naturalmente como uma forma de me distanciar da violência dos acontecimentos que nos foram revelados em novembro de 2020. Teve uma função terapêutica para mim. Acho que teve uma função de aliviar o horror, a dor e o incompreensível, o inimaginável.

Foi muito corajoso partilhar a sua história, porque é que foi importante torná-la pública?

Porque eu estava convencida, desde o início, de que não se tratava de um incidente isolado. Estava convencida de que aquilo por que a minha mãe tinha passado, aquilo por que nós tínhamos passado, tinha sido vivido por outras vítimas. Por isso, senti a necessidade de alertar. Tratava-se de uma convicção, baseada numa convicção muito profunda. Por detrás deste caso, havia um problema de saúde pública muito mais vasto. As investigações deram-me razão.

Foi importante ter um julgamento à porta aberta?

Digamos que era necessário, porque se tivéssemos realizado este julgamento à porta fechada, teria sido um presente maravilhoso para os autores.

Porque é que diz isso?

Porque, de facto, quando um julgamento é realizado à porta fechada, os autores podem dizer o que quiserem, a quem quiserem. Mas público, não havia maneira de escapar.

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Acha que é importante fazer passar a mensagem de que a vergonha tem de mudar de lado?

É evidente que sim, porque é importante que as vítimas de abuso não têm de carregar a vergonha às costas. Temos de ajudar as vítimas a reparar. O discurso da remoção de culpa ainda é muito necessário hoje em dia.

Porque é que em 2025 ainda é necessário, porque não mudou?

Está muito enraizado na mentalidade das pessoas. Os homens sempre tiveram a sensação de dominar ou de ter o direito de controlar as suas mulheres, ou mesmo as mulheres em geral. A noção de consentimento foi sempre posta de lado. É ancestral. Mesmo quando se olha para a literatura, os contos que partilhamos com os nossos filhos, desde a Bela Adormecida até à Branca de Neve, não se pede o consentimento da mulher. Está muito enraizado na nossa cultura. Continuamos a ter dificuldade em ver as coisas de uma forma mais moderna. É difícil fazer com que as pessoas compreendam que as mulheres são livres, independentes e autónomas, e que o seu consentimento é, no mínimo, tão importante como o dos homens.

O caso do seu pai mostrou-nos que havia mais homens a cometerem o mesmo tipo de crimes. Isso foi surpreendente para si?

Honestamente, não sabia que isso existia. Nunca me coloquei essa questão. Depois descobri que este modus operandi é muito utilizado pelos predadores sexuais. O abuso sexual em casos de violência doméstica também é muito comum. Este método [drogar as vítimas] é frequentemente utilizado em casos de incesto envolvendo crianças.

O que se lembra do dia em que descobriu este crime?

Tudo o que me lembro é de um colapso físico e psicológico. Lembro-me simplesmente de ficar completamente congelada com o anúncio dos factos e de não me ter apercebido de que não conhecia esta pessoa. Apesar do que significava para mim. Era alguém em quem tinha total confiança. Foi muito traumático. Muito traumático.

Como nos mostra no seu livro, tinha uma boa relação com o seu pai, era uma pessoa em quem confiava. Nunca desconfiou do seu comportamento?

Nunca. Sabia que ele era irresponsável em alguns aspectos. Mas nunca tinha visto o meu pai a olhar para outra mulher. Nem tinha visto o meu pai a falar de forma desrespeitosa. Nunca vi o meu pai a entrar em sites pornográficos ou sequer ver filmes pornográficos. Por isso, foi uma descoberta mais profunda do horror.

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Qual é a memória mais difícil que tem desta história?

É uma traição total. Nunca tinha visto nada. Vivi ao lado de um criminoso, de um predador sexual, sem nunca ter suspeitado de nada. Essa é, de facto, a parte mais difícil.

Também diz no livro que a sua mãe tinha problemas de saúde. Nenhum médico desconfiou?

Não, nenhuma desconfiança. Os médicos não compreenderam. Ainda hoje é um problema, porque penso que os profissionais de saúde não têm qualquer formação para conseguir identificar. Aliás, nem pensam nisso. Acho que têm uma falsa perceção ou uma ideia preconcebida de que só acontece em ambiente de festa. Quando na maioria dos casos, mais de 40%, acontece na esfera privada e doméstica. Por isso, é necessário um longo processo de desconstrução.

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O que podemos ver com este caso é que existia uma comunidade de indivíduos na internet que partilhavam este tipo de crime.

Hoje em dia estou certa de que existem outras comunidades noutros sites e que inventa estes planos completamente macabros. Muito recentemente, um grupo foi desmantelado no Telegram. É grave.

São pessoas que levam uma vida completamente normal, não é óbvio identificá-los?

Não. O problema é que são pessoas comuns, que estão geralmente bem integradas na sociedade. Os violadores não têm necessariamente a imagem de um monstro ou de um vilão como poderíamos imaginar. Na rua passamos por predadores e nem notamos. Convidamo-los para jantar.

Porque não se fala muito deste tipo de violações, ou seja, de pessoas que são drogadas? Ainda é um assunto tabu?

As vítimas têm dificuldade em pensar que têm o direito de falar e de denunciar. É difícil ter uma dúvida e dizer a si próprio: "Vou tentar esclarecer esta dúvida e investigar".  Infelizmente, o facto de não se dar seguimento às dúvidas das vítimas significa que as vidas são arruinadas. Porque, no fim de contas, é às vítimas que é roubada uma parte da sua vida.

No livro, fala também das fotografias que o seu pai lhe tirou. Como foi essa descoberta?

Bem, já tive muitos problemas para integrar esta informação. E, acima de tudo, senti-me completamente traída. Nunca poderia imaginar que o meu pai pudesse ter uma inclinação sexual para mim. Foi um choque. Foi um choque descobrir que o nosso próprio pai nos olhava de forma incestuosa. É terrível. E não tenho qualquer memória disso. É um buraco negro.

Escreve que é importante saber a verdade sobre se o seu pai a drogou e abusou e lhe tirou as fotografias em roupa interior? Mas não tem a certeza ou tem?

Não. Mas tenho uma convicção muito forte. No entanto, nunca tive uma prova tangível. Mas eu sei o que aconteceu porque me conheço. Sei como funciono, sei que ninguém pode entrar no meu quarto, sem eu saber. Isso não é possível. Portanto, sei que fui sedada. Sei-o.

Também foi mais difícil para a tua mãe?

Continua a ser. Penso que, para ela, estas fotografias não podem existir. É triste.

Que mensagem queria passar com o seu livro?

Que precisamos de confiar uns nos outros e precisamos de falar. Este é o primeiro passo para assumir o controlo. Se não se fala quando se tem uma dúvida ou mesmo uma dúvida comprovada, ou mesmo quando se tem reminiscências, é preciso falar depois. O diálogo é a primeira fase da tomada de responsabilidade e, posteriormente, leva as pessoas a questionarem-se sobre o que podem e não podem fazer. E isso só pode encorajar as pessoas a apresentar queixa.

No livro, questiona-se sobre como irá reagir o seu filho pequeno ao que escreveu. O que pensa sobre isso?

Bem, espero que ele compreenda a minha abordagem de escrever uma verdade, sem disfarçar nada. E, acima de tudo, para fazer algo nobre pelos outros.

"A minha mãe uma mulher forte e independente"

Esperava o impacto mundial do julgamento?

Não. Nunca pensei que tivesse esta dimensão e um impacto internacional tão grande. Nunca pensei que a minha mãe se tornasse um ícone. Para mim, a minha mãe não é um ícone. Ela fez o que tinha de fazer. Penso que as pessoas também projetam muitas coisas e que estamos a entrar numa época em que talvez precisem disso também para se tranquilizarem ou para sentirem um impulso.

Houve momentos no julgamento mais difíceis em que pensou que, se calhar, era melhor não se terem exposto?

Não, nunca duvidei que fosse necessário. Pelo contrário, durante todo o processo, estive numa busca permanente, numa procura da verdade absoluta, que nunca chegou.

Porquê?

Porque ele nunca confessou. Ele nunca confessou todos os factos relativos a Gisèle. Só admitiu os factos sobre os quais o questionaram. Não sabemos mais nada sobre o ato inaugural. Quando é que isso começou? Não sabemos.

Acha que se fez História com este julgamento? Mudou a sociedade?

Não, penso que não, porque as sanções aplicadas não foram tão severas como deveriam ter sido.

Porque diz isso?

Porque a maior parte deles foi condenado a penas entre 3 e 10 anos. Não é um preço alto a pagar. Será que este facto incentiva as vítimas a intentar ações judiciais?

O que é que devemos fazer pelas vítimas?

Devemos dizer às vítimas que façam tudo o que puderem para obter justiça.

Existe uma petição para dar o Prémio Nobel à sua mãe, o que acha disso?

Penso nas outras vítimas, se Gisèle receber a Légion d'honneur ou o Prémio Nobel, o que é que vamos fazer com as outras vítimas? Não há nenhuma vítima mais grave do que outra. Acho que isso é um pouco inapropriado.

E quais foram as reações ao seu livro? Muitas vítimas contactam-na?

Recebi muitos testemunhos de pessoas. Muitas histórias sobre incesto infantil, de vítimas que foram drogadas em criança, durante anos, por um dos pais. É terrível. Além disso, pedem-me ajuda a encontrar provas. Mas o problema com as provas é que, uma vez ultrapassado um determinado prazo, bem, não há provas. Ou análises toxicológicas. Muitas das mulheres ainda se encontram numa situação de trauma e muitas só precisam de serem ouvidas, de que acreditem no que dizem.

Como é que se ultrapassa uma experiência traumática como esta?

Não tenho a pretensão de ter uma receita milagrosa. A única forma de fazer face a tudo isto é através do meu envolvimento no terreno com esta associação [criou a associação #MendorsPas: Stop Chemical Submission: Don’t Put Me Under]. Mas não tenho uma receita milagrosa. Não saberia sequer o que dizer ou recomendar às vítimas que estão a viver este tipo de trauma em paralelo ou de forma semelhante. É tão pessoal.

Como descreveria a sua mãe?

Diria que ela é uma mulher forte e independente. E que hoje está a recentrar-se nela própria.

Partilhou no livro as cartas que o seu pai escreveu à sua família. Porquê?

Fazia parte do processo de descoberta da verdade e de mostrar a psicologia doentia de um Dominique Pelicot. Sabia que as suas reações eram completamente desproporcionadas e que ele não tinha o direito de fazer aquilo. Após a revelação dos factos, já não tinha quaisquer direitos sobre nós. Mas ele tentou na mesma.

Porque é que acha que o seu pai o fez?

Porque é alguém que precisa de dominar e de ter algum tipo de controlo sobre os seus. É um dos traços do seu carácter. 

Acha que ele tem alguma doença? Ou foi a educação?

Não existe qualquer doença psiquiátrica. Ele está completamente consciente. Ele sabe distinguir o certo do errado. Faz parte dele, faz parte do seu ADN.

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O mesmo se aplica aos outros homens que praticaram estes crimes. Eles sabiam que a sua mãe estava drogada?

A maioria sabia-o, mas isso não os impediu de agir. Ninguém recuou. Ninguém denunciou.

Porque é que acha que estes homens estão a fazer isto? 

É uma questão de educação, de mentalidade, é uma questão de respeito pelos outros, isso é uma questão intergeracional também, porque é evidente que a idade não era de todo um critério. 

O que é que a sociedade pode fazer?

Penso que temos de começar por denunciar a violência doméstica. Passa por aí. E não devemos fechar os olhos a comportamentos desprezíveis. É importante falar, dizer às vítimas para falarem, é preciso falar. O silêncio deve ser quebrado.

Acha que também há pessoas que ganharam coragem com a sua mãe?

Penso que talvez tenha permitido a algumas mulheres que não se sentiam suficientemente fortes para enfrentarem as coisas, dizerem a si próprias que estão na idade dela e ao fim de tantos anos de abuso: porque não havia de o fazer? 

Quando terminou o seu livro, o que sentiu?

É uma forma de realização. Primeiro porque foi o meu primeiro livro e, em segundo lugar, senti que estava a contar uma história poderosa, verdadeira e autêntica. Pensei que se ajudasse pelo menos uma ou duas pessoas, já era alguma coisa. 

Falou com o seu pai?

Não. Nada.

Porquê?

Em primeiro lugar, porque durante a investigação não estamos autorizados a falar uns com os outros. Portanto, durou quatro anos. Além disso, o julgamento foi muito bem enquadrado. E a única vez em que me permiti falar com ele foi para lhe arrancar a verdade. E isso nunca aconteceu. A partir do momento em que a verdade não aparece, o diálogo deixa de ser possível.

Como se vive com isso? A noção de que não poderá conhecer toda a verdade que deseja.

Mas eu sei. Nunca saberei o que realmente aconteceu, mas sei o que aconteceu. 

Como é que a sua família pode voltar à normalidade na convivência ou é sempre diferente?

Nunca mais será a mesma coisa. Nunca mais. E temos de viver com isso.

Como é que consegue lidar com as suas memórias, é difícil?

Não olho muito para o espelho retrovisor. Evito. 

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