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Ex-Presidente do Chade levado à força para ser julgado

20 de julho de 2015 às 20:08

Acusado de ser responsável pela morte de 40 mil pessoas, Hissène Habré, deposto em 1990, sentou-se no banco dos réus em Dacar. É a primeira vez que um país africano julga um ex-líder de outro país do continente

O antigo presidente chadiano deposto Hissène Habré, foi hoje levado à força para o tribunal especial de Dacar, à abertura do seu julgamento por crimes contra a humanidade, que se pretende sirva de exemplo para a justiça em África.

Hissène Habré, detido há mais de dois anos no Senegal, onde se refugiou depois de ter sido derrubado, em 1990, pelo actual Presidente, Idriss Deby Itno, é acusado de "crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de tortura".

A repressão feroz sob o seu regime (1982-1990) fez 40.000 mortos, segundo as organizações de defesa dos direitos humanos.


Vestido de branco e usando um turbante, o arguido de 72 anos, que recusava comparecer em tribunal, foi levado à força e colocado no compartimento dos arguidos no palácio de justiça por agentes da administração penitenciária.

De rosário na mão, ergueu o punho e gritou "Allah akbar" (Deus é grande).

O julgamento, que decorre perante as Câmaras Africanas Extraordinárias (CAE), tribunal especial criado pela União Africana (UA) na sequência de um acordo com o Senegal, teve início hoje, dia 20 de Julho, após a retirada da sala de apoiantes do acusado, que repetiram palavras de ordem hostis ao tribunal.

"Mesmo que ele não fale, é necessário que oiça o que nós temos a dizer e que nos veja com os seus próprios olhos", declarou na semana passada Souleymane Guengueng, preso durante mais de dois anos e fundador da Associação das Vítimas de Crimes do Regime de Hissène Habré (AVCRHH).

O presidente do tribunal, Gberdao Gustave Kam, natural do Burkina Faso, constatou que a defesa "não estava representada" antes de prosseguir a sessão, na presença de cerca de mil pessoas.

O arguido, que "não reconhece esta jurisdição, nem a sua legalidade, nem a sua legitimidade", segundo os seus advogados, deu-lhes instruções para também não assistirem às audiências.

O procurador-geral, o senegalês Mbacké Fall, prestou homenagem aos sobreviventes "que tiveram o mérito de iniciar e prosseguir o combate contra a impunidade", garantindo que todos os esforços para se chegar a este julgamento não foram motivados por "raiva contra a pessoa do acusado".

Este julgamento está ser "feito pela nossa população, pelo nosso futuro e pelo futuro de África. Fazemo-lo para nos reconciliarmos connosco mesmos amanhã", disse à agência de notícias francesa, AFP, o ministro da Justiça do Chade, Mahamat Issa Halikimi, presente na audiência.

O bastonário da Ordem dos Advogados do Senegal, Me Mbaye Guèye, instou "os actores do processo a estarem à altura" e a "garantirem ao arguido um julgamento justo, qualquer que seja a estratégia da defesa que ele tenha decidido adoptar".

Antes, inquirida pela AFP sobre o que esperava do julgamento, uma apoiante de Hissène Habré respondeu: "Nada, eles já julgaram e condenaram o Presidente. É uma conspiração do Ocidente".

Este julgamento inédito deverá também permitir ao continente africano, onde o Tribunal Penal Internacional (TPI) é frequentemente acusado de não perseguir dirigentes africanos, dar o exemplo.

"África deve dar provas de que é capaz de julgar os seus próprios filhos para que outros não tenham de o fazer no seu lugar", sublinhou no domingo o porta-voz das CAE, Marcel Mendy.

"É a primeira vez em todo o mundo -- não só em África -- que os tribunais de um país, o Senegal, julgam o antigo Presidente de outro país, o Chade, por presumíveis violações dos direitos humanos", frisou Reed Brody, principal obreiro deste procedimento na Human Rights Watch (HRW).

O julgamento demonstra que "os dirigentes acusados de crimes graves não deverão supor que podem indefinidamente escapar à justiça", congratulou-se o Alto-Comissário da ONU para os Direitos Humanos, Zeid Ra'ad Al Hussein.

Em França, o Ministério dos Negócios Estrangeiros saudou o início do julgamento, recordando que Paris "apoiou a criação" das CAE, bem como "o seu empenho na luta contra a impunidade em todo o mundo".

Até à sua queda do poder, Hissène Habré beneficiou do apoio norte-americano e francês contra a Líbia do coronel Kadhafi, considerado "um padrinho do terrorismo".

Mais de 4.000 vítimas "directas e indirectas" constituíram-se partes civis no processo. O tribunal especial prevê ouvir 100 testemunhas.

Para permitir ao maior número de pessoas possível acompanhar as audiências, que devem durar três meses, elas serão filmadas e transmitidas em diferido pouco depois.

Em caso de condenação, Hissène Habré, cuja pena poderá oscilar entre 30 anos de prisão efectiva e trabalhos forçados perpétuos, poderá cumpri-la no Senegal ou noutro país da UA.

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