"É como se tivesse aqui [apontando para o peito] um balão que se vai enchendo, enchendo, enchendo." Recordo esta frase de uma menina que, com os seus 9 anos, procurava, através de uma imagem, descrever aquilo que sentia e que as palavras que possuía não podiam descrever. Trabalhava então numa Escola - pequena de tamanho, mas grande em diversidade, complexidade e riqueza humana - e ainda no início do meu percurso profissional experienciava a importância da literacia em saúde psicológica e o quão fundamental é darmos um nome ao que sentimos (reconhecendo, do ponto de vista psicológico e até físico, as nossas emoções) para o organizar, compreender e para melhor lhe respondermos.
Recordo-as (a menina, a conversa, a Escola e a comunidade) a propósito de um testemunho de Abier Almasri da Human Rights Watch que afirma "precisarmos de um novo dicionário para descrever o que sentimos e o impacto psicológico" a propósito da situação que se vive(u) na Faixa de Gaza onde, às perdas diversas das pessoas e famílias, se associam "feridas emocionais" de quem sobrevive(u). Human Rights Watch que, poucos dias antes em relatório, apresentou dados que indicam que 9 em cada 10 crianças e jovens em idade escolar em todo o Mundo viram prejudicada a sua educação devido à pandemia que vivemos.
Não pretendo comparar os impactos de um conflito com décadas com a pandemia. Mas quero sublinhar que, se nas adultas e nos adultos a crise sócioeconómica concomitante exponencia os impactos da pandemia na saúde psicológica; as crianças e jovens sentem, não apenas as consequências daquele que é o impacto nas cuidadoras e nos cuidadores, mas também as que resultam de dois anos lectivos atípicos que acrescentam dificuldade e desafio à situação e intensificam os problemas de saúde psicológica com impacto na aprendizagem, motivação e comportamento, particularmente naquelas e naqueles com maiores vulnerabilidades. Consequências que abrem espaço a "feridas emocionais" se não organizadas e compreendidas. Se, enquanto sociedade, não lhes respondermos.
"Tens de escrever sobre a urgência nas Escolas (...) vi uma crise de ansiedade como nunca havia visto", dizia-me uma psicóloga amiga com muitos anos de Escola(s). E depois outra e outro confirmando "a urgência nas Escolas" e as Escolas como lugar micro de uma realidade macro da sociedade. São-no sempre. Senti-o particularmente nos anos da crise sócioeconómica da última década, aquando do episódio que antes descrevi, e como dia-a-dia, entrava na (minha) Escola e impactava as crianças e jovens com quem trabalhava. Senti-o como hoje sentem as minhas e os meus colegas os impactos da pandemia COVID-19 e das suas múltiplas e diversas consequências.
É certo que a década que passou trouxe alterações, algumas positivas. Desde logo há hoje maior sensibilidade na Educação para a importância de desenvolvimento de competências sócioemocionais e para a promoção da capacidade de adaptação e resiliência de crianças e jovens. Há mais reconhecimento da importância da promoção da literacia em saúde e em saúde psicológica, nomeadamente no que se refere à compreensão/reconhecimento das emoções. Há, também, mais psicólogas e psicólogos, de forma mais contínua e regular nos contextos escolares. Psicólogas e psicólogos com papel mais amplo e cientificamente sustentado que, ao invés de apenas centrado em estratégias remediativas, se foca em políticas de prevenção e promoção que abrangem toda a comunidade educativa. Há ainda mais experiência e partilha de trabalho conjunto entre diversos agentes educativos, de uma concepção da educação inclusiva e do objetivo, ainda que não totalmente cumprindo, de "não deixar ninguém para trás". Há, finalmente, resultados desta acção patentes por exemplo no nível de abandono escolar precoce em queda impressionante (6,5% no 1º trimestre), particularmente porque conjugada com o aumento da escolaridade obrigatória até ao 12º ano, e que faz jus ao trabalho dos diversos actores e da comunidade educativa.
Apesar disto, estudos no Reino Unido com resultados que em Portugal não surpreenderiam, indicam que quase 8 crianças e jovens em cada 10 revelam sentir impactos da pressão da Escola na "qualidade" da sua saúde psicológica e cerca de 93% dos professores e das professoras consideram que o sistema educativo coloca mais foco (e recursos) na performance académica das e dos estudantes que na sua possibilidade de bem-estar. Outro, em Portugal, que apenas 1 em cada 4 crianças brinca pelo menos 3 horas por dias conforme recomendado pela Organização Mundial da Saúde. Três indicadores (podiam ser outros) que podem servir-nos de base para entendermos o ciclo vicioso de não envolvimento com a Escola das crianças e jovens, particularmente aqueles e aquelas com maiores vulnerabilidades, que cedo podem sentir e sofrer desfasamentos diversos. São também ponto de partida - no momento que vivemos e no qual à ansiedade se junta o stresse, a agitação e preocupação, ou o medo e a apatia, resultante de períodos de isolamento físico (por vezes, realmente social) com exposição ainda mais significativa a iniquidades contextuais que vão desde as condições físicas das habitações, às oportunidades de relação e estimulação com outras crianças, jovens e adultas e adultos – para a necessidade de estratégias concertadas de recuperação, promoção, desenvolvimento e bem-estar junto de crianças e jovens.
Voltando ao Reino Unido, nos últimos dias de Theresa May enquanto Primeira-Ministra Britânica, foi anunciado um amplo programa de formação para todas as professoras e professores estarem mais sensíveis e capacitados para, precocemente, identificarem dificuldades e problemas de saúde psicológica nas e nos estudantes. Este programa resulta, também, de um debate público que se havia iniciado para um livro verde da prevenção que visa a prevenção "proactiva, preditiva e personalizada" para a saúde no Reino Unido na década de 2020 com enfoque no "desenvolvimento, aconselhamento, apoio e cuidados personalizados às crianças e jovens" e numa "maior protecção contra ameaças futuras".
Já em Portugal, neste período (pós-)COVID-19 foi criado um grupo de trabalho multidisciplinar para produção de recomendações no âmbito de um plano de recuperação e consolidação de aprendizagens e, em linha com o pacto europeu para a saúde mental e bem-estar e com um estudo recente que afirma que 37% das e dos jovens entre os 18 e 24 anos solicitam mais acompanhamento na área da saúde mental, o Conselho Nacional de Saúde, a Federação Nacional de Associações Juvenis e a Direcção-Geral da Educação apresentaram recentemente a Agenda da Juventude para a Saúde 2030, que visa um forte impulso às dimensões da saúde psicológica, à prevenção e à promoção de competências. Resta, no entanto, concretizar um "Crescer-19", uma mudança verdadeira e impactante através de uma agenda de prevenção e do desenvolvimento que, neste 01 de Junho de 2021, nos poderia guiar, impulsionando a "urgência na educação", a inversão do actual ciclo pela possibilidade de activação e de garantia de propósitos e significados para o que vivemos e que, conforme o projecto do Reino Unido, se assumisse como uma agenda interministerial transversal, relacionando várias áreas e contextos, nomeadamente articulando mais eficaz e eficientemente a acção e os recursos da educação com a saúde, trabalho e segurança social ou desporto e juventude, prolongando e porjectando o conjunto de acções além dos tradicionais anos e ciclos lectivos e para os múltiplos contextos de vida das crianças e jovens.
Na verdade, aqui e ali, no Mundo ao redor, ao contrário do Dia da Criança que se comemora em dias distintos de país para país, em qualquer lugar do Mundo onde exista uma criança colocam-se desafios ao seu desenvolvimento e bem-estar hoje, devido à pandemia, mais complexos. Desafios que merecem um "Crescer-19", uma agenda de prevenção e promoção, investimento fundamental para um futuro com crianças, jovens e adultas e adultos com mais possibilidade de se cumprirem, de floresceram e expressarem o seu potencial, com mais saúde psicológica, com maior capacidade de adaptação e resiliência e com maior potencial de bem-estar.
Tiago Pereira
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