Sábado – Pense por si

Tiago Pereira
Tiago Pereira Psicólogo e membro da direção da Ordem dos Psicólogos Portugueses
20 de novembro de 2024 às 07:00

O bem-estar, idiota

É estranho que, nas inúmeras e longas reflexões que vejo serem realizadas sobre a quebra de resultados escolares das crianças e adolescentes em indicadores internacionais ou em provas de aferição, raras vezes se discutam os níveis de bem-estar e o impacto que têm no seu envolvimento, motivação, nas aprendizagens e no seu desempenho.

A expressão é feia, mas útil. Foi recuperada também a partir da recente vitória de Trump nas eleições americanas, mas fundamentalmente porque existe um movimento que, um pouco por todo o Mundo e com especial ênfase na Europa, tem conduzido a que mais vozes e partidos iliberais e autoritários ganhem relevância no espaço público e capacidade de influência e decisão nos governos locais, nacionais e supranacionais. Refiro-me à expressão "The economy, stupid" [A economia, idiota], cunhada por James Carville, quando a distribuiu pela sede de campanha de Bill Clinton, aquando da sua candidatura às presidenciais de 1992, procurando que todas as pessoas envolvidas com a candidatura tivessem presente a todo o tempo que a economia, o seu estado e as propostas apresentadas nesse âmbito seriam o factor fundamental de decisão das eleitoras e dos eleitores. Clinton ganhou e a expressão perdurou.

Talvez 32 anos depois, em 2024, Carville lhe acrescentasse uma relevante palavra – percepção. Mais decisivo que o estado da economia, é a percepção pelas pessoas do estado da economia. E, acrescento eu, mais decisivo que o estado da economia e do que a percepção do estado da economia, embora significativamente impactada por estas dimensões, é a avaliação que cada pessoa faz da sua vida, do seu bem-estar e, particularmente, a comparação que faz entre o que sente e o que sente que poderia sentir e entre o que sente e o que sente que outras pessoas sentem. Confuso? Digo de outra forma: o bem-estar que sentimos e o resultado de o compararmos com uma ideia de bem-estar ideal nosso. O bem-estar que sentimos e o resultado de o compararmos com o nível de bem-estar que intuímos que outras pessoas sentem.

Creio que estes dois elementos são vitais à compreensão do movimento que atrás descrevo e que, como refiro, teve um impulso significativo com o expressivo resultado das recentes eleições nos EUA. Não apenas quem vota/votou está à procura de ganhos de bem-estar para si, aproximando-se do que imagina como sendo o seu bem-estar potencial, como está à procura alterações no resultado da comparação que fazem com outras pessoas, pessoas que algumas sentem não merecer o nível de bem-estar que aparentam. Daqui resulta que existirão pessoas que estarão até disponíveis para que o seu nível de bem-estar não aumente desde que a diferença face a outras e outros possa aumentar.

Indo um pouco mais fundo no conceito de bem-estar podemos, creio, perceber que o seu alcance vai além da dimensão da economia, tocando dimensões que estão, hoje, particularmente desafiadas quer por desafios societais mais globais, quer por alterações sociais e demográficas profundas. Em Maio de 2022 escrevi nesta rúbrica um artigo intitulado"O bem-estar em todas as políticas"onde, para reflectir sobre como o bem-estar deveria estar presente, informar e ser objecto prioritário de todas as políticas, parto do Índice de Bem-Estar da OCDE.

Índice que demonstra o quão complexo e impactante é o bem-estar quando, para responder à pergunta chave do indicador - "como vai a (sua) vida?" – reúne 11 dimensões que são centrais na forma como pensamos um lugar, uma cidade, um país e logo a sua governação: acesso a cuidados de saúde de qualidade; conciliação entre vida pessoal e profissional; condições de habitação; educação e formação; envolvimento cívico e participação democrática; percepção de satisfação com a vida; qualidade do meio ambiente; rendimento; segurança; suporte e conexão social; e trabalho e emprego de qualidade.

Ora, por mais contraintuitivo que possa parecer, porque em parte dos países do Mundo se tem hoje acesso a um conjunto de elementos que poderiam apontar a um caminho triunfante no sentido de maior bem-estar, a forma de análise que atrás descrevo e as comparações que gera, tem provocado estagnação, por vezes quebra e, principalmente, o enraizamento de uma percepção de que as novas gerações, particularmente em alguns países da Europa e nos EUA, enfrentarão um declínio nestes indicadores. Esta percepção é, por si só, geradora de stresse e angústia, mas, também, de raiva e ressentimento, hoje emoções apontadas por estudos de opinião como profundamente preponderantes na tomada de decisão política e na escolha de pessoas/partidos, particularmente que apresentem soluções simples e imediatas para desafios iminentemente complexos e duradouros.

É por isso que é fundamental que privilegiemos a possibilidade de bem-estar e que, enquanto sociedade, nos sobressaltemos com o facto das nossas crianças e jovens – sim, as crianças e jovens em Portugal – terem hoje indicadores de bem-estar ou de saúde mental bastante piores face aos seus pares há alguns anos, pares estes hoje jovens adultas e adultos com indicadores de bem-estar ou de saúde mental bastante piores face a quem teve estas idades há já alguns anos. Mais uma vez confuso? O que quero dizer é que quando estamos preocupados, e bem, com os problemas de saúde mental na população jovem (por exemplo em estudantes do ensino superior) importa que saibamos que essas e esses jovens, quando crianças e adolescentes, tinham indicadores de saúde mental melhores face ao que as crianças e adolescentes hoje têm e que, considerando que parte significativa dos problemas de saúde mental se desenvolvem nessas idades, se nada de significativo fizermos, podemos esperar que daqui a alguns anos os problemas de saúde mental venham a ser ainda mais prevalentes na população jovem e o bem-estar por ela percebido bastante menor.

Com base nestes indicadores é estranho que, nas inúmeras e longas reflexões que vejo serem realizadas sobre a quebra de resultados escolares das crianças e adolescentes em indicadores internacionais ou em provas de aferição, raras vezes se discutam os níveis de bem-estar e o impacto que têm no seu envolvimento, motivação, nas aprendizagens e no seu desempenho. Nos resultados escolares como nos níveis de práticas agressivas e violência, na não-autonomia, na não-participação cívica, nas dificuldades em pensar e construir projectos de vida e com mais exemplos poderíamos continuar.

Na verdade, aqui e ali, no Mundo ao redor, a possibilidade de bem-estar e a geração de oportunidades de mais bem-estar individual e social para todas as pessoas é essencial para pensarmos os desafios do presente e do futuro. Impõe-se, nesse sentido, que contribuamos e advoguemos por uma nova centralidade do bem-estar sob pena de entrarmos mesmo num ciclo que confirme o tal declínio nas gerações presentes e futuras que algumas pessoas percepcionam e/ou preveem.

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