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Rui Costa Pereira
Rui Costa Pereira Advogado
04 de janeiro de 2025 às 10:00

Violência doméstica: uma leitura dos números, em tempos de “perceções”

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Edição de 5 a 11 de agosto

Deter cada vez mais, prender cada vez mais, não tem servido para travar o número de casos de violência doméstica. Por todas aquelas vítimas que pereceram e por todas aquelas de que tem obrigação de proteger, o Estado tem de fazer algo mais e claramente diferente daquilo que tem feito.

Os dados disponibilizados pela Direção-Geral da Política de Justiça indicam que em 2018 foram registadas 26.483 ocorrências de violência doméstica pelas autoridades policiais; em 2019, 29.498; em 2020, 27.637; em 2021, 26.520; em 2022, 30.488 e em 2023, 30.461 ocorrências. Um aumento de 15% nas ocorrências registadas ao longo do ano, se compararmos os dados de 2018 e de 2023. 

Segundo dados da Polícia Judiciária, em 2019, 26 mulheres foram vítimas de homicídio em contexto de violência doméstica; em 2020, 27 mulheres; em 2021, 16 mulheres; em 2022, 24 mulheres; em 2023, 17 mulheres. Relativamente a 2024, os dados conhecidos ficam-se pelo 3.º trimestre, altura em que já se contabilizavam 18 vítimas do sexo feminino. 

No final de 2018, encontravam-se, em liberdade, a frequentar programas para agressores, 1273 pessoas; no final de 2019, 1641; no final de 2020, 1957; no final de 2021, 2714; no final de 2022, 2762; no final de 2023, 2255; e no final de 2024, frequentavam, em liberdade, programas para agressores, 2582 pessoas. Uma variação de 102%, olhando para 2018 e para 2024. 

No que respeita à situação coativa mais grave, no final de 2018, encontravam-se em prisão preventiva 112 arguidos; no final de 2019, 202 arguidos; no final de 2020, 255 arguidos; no final de 2021, 243 arguidos; no final de 2022, 281; no final de 2023, 323; e no final de 2024, encontravam-se sujeitos à medida de coação mais gravosa, 342 arguidos. Uma variação de mais de 205%, comparando 2018 e 2024. 

Por fim, o número de reclusos em cumprimento de pena pela prática do crime de violência doméstica, no final de 2018 correspondia a 708; no final de 2019 a 808; no final de 2020 a 866; no final de 2021 a 892; no final de 2022, 955; no final de 2023, 1003 reclusos; e no final do ano que findou, em 2024, encontravam-se a cumprir pena de prisão efetiva pelo referido crime, 1027 reclusos. Um aumento de mais de 45%, vendo 2018 e 2024. 

O crime de violência doméstica, na sua modalidade mais simples, é punível com pena de prisão até 5 anos. Mas se da sua prática resultar a morte da vítima, o crime passa a ser punível com pena de prisão até 10 anos. 

Apesar de nos últimos anos se ter verificado um acentuado crescimento do número de arguidos sujeitos à mais gravosa das medidas de coação, porque denunciados pela prática do crime de violência doméstica; de se ter verificado um relevante crescimento do número de pessoas integradas, em liberdade, em programas para agressores de violência doméstica; e de ter também aumentando relevantemente o número de reclusos que se encontravam a cumprir pena de prisão pela prática do crime de violência doméstica, 

A verdade é que o número de ocorrências registadas pelas autoridades policiais não tem vindo a diminuir, tendo, aliás, aumentado, relevantemente, após o período pós-pandemia, registando números superiores aos que se registavam antes. 

E todos os anos continuam a morrer demasiadas pessoas, sobretudo mulheres, vítimas deste crime. Como vimos, os dados da Polícia Judiciária apontam para perto de 20 vítimas anuais, desde 2018. Neste aspeto é onde as variações percentuais, de ano para ano, se apresentam menos relevantes ou expressivas. 

Não tendo dados que me permitam questionar a validade da situação carcerária (seja cautelar, seja em termos de cumprimento de pena) a que se encontram aqueles que foram investigados e/ou julgados por violência doméstica, assumirei como válidas e devidas todas as situações contabilizadas. Importa deixar bem claro que as cogitações que aqui faço não visam, de modo algum, pôr em causa estas situações. 

O que pretendo sinalizar é que apesar de um quadro jurídico e judicial crescentemente repressivo, nem assim o fenómeno da violência doméstica está a abrandar. Bem pelo contrário.  

E num momento em que os extremismos se acentuam, o discurso populista impera e em que os agentes políticos se parecem pautar por meras perceções, é importante não deixar de olhar para os números, para os dados, para aquilo que é objetivo.  

Deter cada vez mais, prender cada vez mais, não tem servido para travar o número de casos de violência doméstica. Por todas aquelas vítimas que pereceram e por todas aquelas de que tem obrigação de proteger, o Estado tem de fazer algo mais e claramente diferente daquilo que tem feito. 

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