Sábado – Pense por si

Rui Costa Pereira
Rui Costa Pereira Advogado
14 de setembro de 2024 às 10:00

Não há falta de Procuradores. Há mães a mais

Ninguém deve ter de escolher entre ser um excelente profissional ou um pai ou uma mãe ainda melhor. Já devíamos ter chegado a um nível civilizacional que permita a coexistência das duas realidades. Palavras como as de Lucília Gago contribuem para estarmos mais longe desse dia.

A cerca de 1 mês de terminar o seu mandato enquanto Procuradora-Geral da República, Lucília Gago compareceu perante a 1.ª Comissão da Assembleia da República, "para apresentação institucional do relatório anual de atividades do Ministério Público (requerimentos do BE e PAN)". 

Na sua audição, Lucília Gago começou por responder às múltiplas questões dos deputados para dizer e sugerir, entre outras atrocidades, que os principais suspeitos da violação do segredo de justiça são os arguidos e os seus advogados, que ganhariam na vitimização que essa violação potencia e, num jeito siamês ao da direção do sindicato de magistrados do Ministério Público – a ver vamos se sobre o que aqui direi de seguida também virão na acostumada defesa da sua dama –, que só se vai lá no combate a essa violação do segredo de justiça com o recurso às escutas telefónicas.  

Já tive oportunidade de o dizer publicamente e não me cansarei de o repetir: é um absurdo querer admitir escutas para o combate do crime de violação segredo de justiça, crime que, do ponto de vista da sua moldura penal, vale menos que um "mero" furto, um dano sobre uma coisa qualquer, a ofensa à honra do Presidente da República ou um crime de embriaguez. Para combater um crime que é uma bagatela do ponto de vista legal não se pode admitir o recurso a um dos mais intrusivos meios de recolha de prova. Isto por um lado. Por outro lado, se a investigação só surge depois da violação do segredo, a escuta vai escutar o quê? A prática do crime não é com certeza. 

Muito mais poderia dizer sobre isto. Hoje, contudo, não são as entrelinhas do processo penal que aqui me trazem. 

Quando se fala em público e se tiverem de se aplicar aspas nalguma expressão que se utilize no discurso oral – por exemplo para sinalizar algum exagero ou hipérbole discursiva –, é habitual recorrer-se àquele jeito, às vezes até ridiculamente designado por "orelhas de coelhinho", fletindo rapidamente dois dedos em cada mão, sobre a cabeça, para deixar absolutamente claras as aspas sobre a expressão que se verbaliza. 

Nas notícias que li, ao longo do dia 11, em torno das respostas de Lucília Gago às questões dos deputados, particularmente sobre uma alegada falta de meios humanos do Ministério Público, constatei que a mesma respondeu que "o peso do sexo feminino é hoje superior a dois terços ou perto de 90% se considerada a faixa etária até aos 30 anos" e que "objetivamente, esta circunstância constitui um fator de agravamento de constrangimentos em razão de situações de gravidez, de gravidez de risco, de ausência por força de baixa para assistência a filhos melhores, gozo de licença parental, enfim, ausências para efeito de amamentação, toda uma panóplia de situações que naturalmente ocorrem comumente" (destaque e sublinhado meus). E respondeu isto por causa d’"os alertas sobre a falta de magistrados".  

Como nas várias referências feitas a estas frases que li escritas na imprensa não identifiquei quaisquer aspas sobre a expressão "constrangimento", fui ver com os meus olhos e ouvir com os meus ouvidos o que Lucília Gago disse. E disse isto mesmo. Sem quaisquer orelhinhas sobre a sua cabeça. 

Qualquer dicionário da língua portuguesa dirá que constrangimento – curiosamente um nome masculino – significa ou é sinónimo de desagrado, embaraço, coação, pressão, restrição imposta sobre a vontade (com ou sem violência), obrigação, insatisfação, etc.  

Quando Lucília Gago disse o que disse a este respeito, a sua audição já levava mais de uma hora; a mesma já tinha tido quase uma hora para, enquanto ouvia as diversas questões que lhe foram colocadas, preparar uma resposta a dar a cada uma delas; estava notoriamente munida de elementos documentais, anotados, apontados e com diversas sinaléticas e post-it para a auxiliar e, portanto, assumo que ao responder o que respondeu, sabia muito bem o que estava a dizer. Só não faço a mais pequena ideia de qual o sinónimo de constrangimento que estava na sua cabeça quando disse o que disse. 

As palavras têm o seu peso. Eu sei bem que medi muito bem o de todas as que aqui escrevo. E aquelas palavras (de Lucília Gago) esmagam. 

Ao dizer o que disse, Lucília Gago deu espaço a diversas interpretações, nenhuma delas positiva. Responder aos "alertas da falta de magistrados" destacando a gravidez comum, a gravidez de risco, as licenças parentais, a necessidade de assistir filhos menores e a amamentação não é aceitável. Dizer o que disse ou dizer não há falta de pessoas, há é mães a mais, é dizer, exatamente, a mesma coisa. É dizer que mais valia termos mais homens como magistrados.  

Mas também se fosse isto, era pior a emenda que o soneto, porque era o mesmo que dizer que os avanços sociais no sentido de equilibrar as responsabilidades na parentalidade, retirando o peso há muito excessivo que recai sobre as mulheres, ao mesmo que tempo que se reconhece o direito de os homens participarem mais no processo de crescimento e educação dos seus filhos, não são avanços, mas antes constrangimentos. 

Porque estamos muito aquém dos avanços que as mulheres, as mães, as famílias, os pais, precisam, palavras como as de Lucília Gago não podem ser toleradas, sem que lhes seja dada a resposta devida. É, com certeza, livre de ter a opinião que tiver e até poderá entender como um retrocesso aquilo que eu considero um avanço. Como também serei livre para a criticar. 

Numa altura em que com inteira justiça se multiplicam as vozes que alertam para o estado de absoluto burnout em que se encontram muitos profissionais forenses, incluindo os magistrados do Ministério Público, destacar os constrangimentos que Lucília Gago escolheu destacar perante uma alegada ou eventual falta de meios humanos é abrir caminho para que essas situações continuem e se agravem. É sugerir – e, por isso, é afirmar o que se pretende, de forma sinuosa e cobarde – que as procuradoras (e os procuradores) têm de optar pela carreira, em prejuízo da sua vida pessoal e familiar. É procurar encobrir a sua incompetência e falta de capacidade organizativa, enquanto responsável hierárquica máxima do Ministério Público, por, ao longo dos 6 anos do seu mandato, não ter sido capaz de estabelecer orientações e de organizar os serviços de modo a que a maternidade não fosse qualquer constrangimento e, muito menos, um dado, mesmo que em rodapé, para explicar qualquer falta de meios humanos. 

Ninguém deve ter de escolher entre ser um excelente profissional ou um pai ou uma mãe ainda melhor. Já devíamos ter chegado a um nível civilizacional que permita a coexistência das duas realidades. Palavras como as de Lucília Gago contribuem para estarmos mais longe desse dia. Também por isso não me cansarei nunca de repetir: já vai tarde. 

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