Sábado – Pense por si

Renato Gomes Carvalho
Renato Gomes Carvalho Membro da direção da Ordem dos Psicólogos Portugueses
11 de junho de 2025 às 07:00

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Edição de 4 a 10 de novembro

Uma antiga expressão diz que a melhor forma de destruir uma cidade é bombardeá-la ou então congelar as rendas.

Numa sátira televisiva à situação doreal estate londrino, já com alguns anos, uma agente de uma imobiliária mostrava um apartamento nas margens do rio Tamisa a um casal. Na visita, ia enaltecendo as vantagens daquele imóvel, com uma espécie de remoque: "Podem ver que o apartamento tem estas magníficas áreas, áreas de que não precisam"; "Daqui têm esta magnífica vista para o rio e para a cidade, de que só vão desfrutar uma ou duas vezes por ano"; "A suite tem um wc com esta enorme banheira, que vocês nunca irão usar", e por aí fora. Se aquela sátira era aplicada à então situação imobiliária de uma cidade onde compradores endinheirados sempre fizeram questão de aplicar o seu dinheiro - para não usar outro verbo - , podemos afirmar que, com a realidade que temos à nossa volta, a mesma continua atual e cada vez mais aplicada às cidades do mundo, incluindo as do nosso país. Várias notíciastêm falado nisso, por exemplo, olhando para o rácio de alojamento turístico em Lisboa ou para o aumento dos preços das casas.  

Tem gerado acesos debates a perspetiva de que as cidades estão inacessíveis aos cidadãos comuns locais, que não têm rendimentos para acompanhar os preços praticados, ou que o centro das cidades é cada vez mais uma espécie de partie town, onde se amontoam serviços turísticos, tuk tuks, trolleys e botellons, e circulam hordas de pessoas em visitas rápidas sem acrescentar valor. Há quem alerte para a designada gentrificação negativa, a saída dos cidadãos das suas cidades e a imagem crescente de prédios e ruas em que, à noite, não se veem luzes acesas nas casas, uma vez que os proprietários não vivem ali - são apenas proprietários. Por outro lado, há quem contraponha com a revitalização de um edificado devoluto ou em estado decrépito, bem como o contributo para a economia e para a dinâmica das cidades que isso significa, para não falar na ideia das pessoas tomarem decisões racionais e terem o óbvio direito a dar o destino que entenderem aos seus bens. 

Estes movimentos têm sido estudados sob diferentes prismas e a questão da amplitude do seu impacto é já colocada no plano da saúde psicológica, do bem estar e do desenvolvimento humano. Por exemplo, se os primeiros anos ou décadas da idade adulta correspondem a um período significativo de desenvolvimento da personalidade, em resultados das expetativas e dos novos papeis sociais que se criam a partir daí, o que podemos dizer quando não existem condições de contexto, nomeadamente económicas e habitacionais, para essas expetativas e papeis sociais se cumpram? Ou seja, como ser adulto, com tudo o que isso significa, se não há forma de ter uma vida autónoma? 

Vários estudos têm estabelecido uma ligação entre a transformação das cidades e a saúde mental e o bem-estar das pessoas, uma ligação que não é linear e depende de fatores como a perceção da mudança e a condição económica. Por exemplo, mostram que viver em bairros considerados gentrificados está associado a sofrimento psicológico, especialmente para residentes de longa data ou em situação economicamente vulnerável. A insegurança habitacional e o aumento dos custos contribuem para esse impacto negativo. Além disso, pessoas forçadas a sair de áreas gentrificadas apresentam maior probabilidade de recorrer a serviços de urgência por razões de saúde mental. No entanto, uma perceção positiva da mudança e a segurança financeira estão ligadas a melhores indicadores de saúde mental. 

Viver sob exigências elevadas e simultaneamente ter a perceção de poucos recursos necessários para lidar com isso é uma boa definição de stress. Quando isso se prolonga no tempo e afeta dimensões tão importantes da nossa existência, como é o sítio onde vivemos, então a dimensão do problema é superior. E se doses moderadas de stress até podem ser producentes, viver em incerteza, insegurança económica e com uma ausência do sentimento de pertença à sua própria rua, bairro ou comunidade é um fator central, não apenas na saúde psicológica individual, mas também na segurança pública e na coesão social. Motivo pelo qual a crise da habitação que se vive na Europa e particularmente no nosso país é já uma questão social e de saúde pública. 

Uma antiga expressão diz que a melhor forma de destruir uma cidade é bombardeá-la ou então congelar as rendas. Entre uma circunstância de cidades com um edificado decadente, devoluto ou em ruínas, porque não existe interesse nele ou não há condições para os reabilitar, e outra, de reabilitação destinada apenas a quem pode pagar valores incomportáveis ou para alojamento turístico, terá de ser encontrado um equilíbrio, desde logo em sede de políticas públicas. Um equilíbrio que interessa a todos do qual depende a saúde e o bem-estar dos cidadãos, a segurança e a coesão social.  

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