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Paulo Lona
Paulo Lona Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
02 de setembro de 2025 às 07:09

Sinais do tempo na Justiça

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Edição de 15 a 21 de outubro

A maioria dos magistrados não dispõe de apoio psicológico adequado, o que resulta em inúmeros casos de burnout. Se esta estratégia persistir, a magistratura especializada comprometerá a qualidade do trabalho, sobretudo na área da violência doméstica.

Terminou o período de férias judiciais de verão, retomando-se a rotina habitual e o ritmo normal de trabalho nos tribunais e nos serviços do Ministério Público. Importa salientar que estes serviços não encerraram durante o recesso, continuando magistrados e oficiais de justiça a assegurar todo o serviço urgente, muitas vezes em elevado volume.

Mas o que esperar neste regresso a partir de setembro?

As dificuldades antes existentes mantêm-se inalteradas. A contestação dos magistrados do Ministério Público persiste, enquanto se aguarda a decisão de uma providência cautelar interposta no Supremo Tribunal Administrativo, que visa a suspensão dos efeitos do recente movimento. A carência de magistrados do Ministério Público continua a ser uma grave problemática em todas as 23 comarcas do país, agravada pelo reduzido número de novos ingressos após a formação no Centro de Estudos Judiciários, sem que haja reforço adequado.

Anualmente, o aumento de baixas por motivos de saúde relacionados com doenças profissionais e burnout continua a colocar pressão sobre um quadro limitado, reforçado apenas por poucos magistrados do quadro complementar, insuficientes para cobrir todas as ausências. Esta situação obriga os restantes magistrados a assumirem cargas de trabalho excessivas, com longas horas, frequentemente prolongadas até à noite, fins de semana e feriados, amplificando a exaustão física e psicológica.

A maioria dos magistrados não tem acesso a medicina do trabalho, e nenhum dispõe de apoio psicológico adequado, o que resulta em inúmeros casos de burnout sem diagnóstico. Em resposta, o Conselho Superior do Ministério Público optou, na sua deliberação anual, por ocultar a escassez de recursos humanos, extinguindo lugares, agregando vagas e alargando competências de forma que compromete gravemente a especialização e prejudica o serviço prestado à sociedade.

Se esta estratégia persistir, a magistratura especializada dará lugar a um modelo generalista e multifuncional, comprometendo a qualidade do trabalho, sobretudo nas áreas de família e menores, criminalidade económica e violência doméstica.

Em resultado, 75% dos magistrados do Ministério Público subscreveram uma carta aberta a solicitar a anulação da deliberação do movimento. Além disso, em julho, foram realizadas greves nacionais e regionais, com grande adesão, em defesa dos interesses dos

cidadãos, exigindo um Ministério Público qualificado, especializado e eficaz, capaz de responder adequadamente às necessidades da sociedade.

Neste momento de reinício, é fundamental reiterar o apelo à Procuradoria-Geral da República e ao Conselho Superior do Ministério Público para que alterem o atual modelo de gestão dos quadros, que tem contribuído para a precarização da carreira dos magistrados. É igualmente crucial reconhecer que o número de magistrados é insuficiente para preencher todas as vagas, evitando assim a supressão, fusão ou agregação indevida das mesmas.

Deve ser valorizado o elevado nível de exaustão dos magistrados, muitos dos quais estão em risco de burnout, agravado pela ausência de medicina do trabalho, pela precarização derivada da extinção de postos e pela conversão de cargos efetivos em funções auxiliares, assim como pela desvalorização da especialização. Proteger o bem-estar físico e psicológico dos magistrados é essencial para garantir que continuem a desempenhar eficazmente as funções sociais a que estão vinculados. Não existe “mais um bocadinho” para dar ao serviço porque os magistrados do Ministério Público já estão no limite.

Nada fazer não é opção.

Os magistrados e a sociedade esperam que a Procuradoria-Geral da República e o Conselho Superior do Ministério Público enfrentem a realidade atual e ajam com a devida sensibilidade, reconhecendo a legítima revolta dos magistrados do Ministério Público.

É preciso entender os sinais do tempo e agir. Recorrendo a uma citação bíblica “Sabeis discernir o aspeto do céu, mas não podeis discernir os sinais dos tempos.” (Mateus 16:3, Evangelho de Mateus).

Este é o momento oportuno para que, no âmbito do Conselho Superior do Ministério Público, seja criado um grupo de trabalho destinado a rever as alterações funcionais introduzidas no último movimento, ouvindo as preocupações dos magistrados e da sociedade civil.

O início de um novo período após as férias judiciais é sempre uma oportunidade para reflexão e reajuste. No entanto, a persistência de problemas estruturais no Ministério Público exige mais do que simples retoma de rotina: exige coragem para reconhecer as fragilidades, compromisso para corrigir as desigualdades e determinação para proteger os profissionais que sustentam o sistema judicial. Só assim será possível garantir uma justiça eficaz, especializada e justa, alinhada com as reais necessidades da sociedade.

Que o regresso traga boas notícias ao sistema de justiça, aos magistrados, advogados, oficiais de justiça, solicitadores, agentes de execução, policias e a todos os cidadãos.

Um bom regresso para todos os intervenientes no sistema de justiça.

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