“Sim, meritíssimo, roubei um beijo, mas foi por pura necessidade"
Bernardo levantou-se com as pernas trémulas. Era um homem jovem, de seus vinte e poucos anos, com cabelo castanho desalinhado e olhos verdes brilhantes que carregavam uma profundidade inesperada.
Na austera sala do Tribunal Judicial Criminal da Comarca de Lisboa, na Boa Hora, o silêncio era tão denso que se podia ouvir o tiquetaque do velho relógio da parede, uma relíquia do século XIX que testemunhara incontáveis julgamentos. A ventoinha zumbia suavemente, misturando-se com o som ocasional de papéis sendo folheados e o ranger discreto dos bancos de madeira maciça.
Sentado no banco dos arguidos, Bernardo Almeida ajeitou pela décima vez o colarinho da única camisa limpa e passada que possuía, um presente da sua falecida mãe. As mãos tremiam-lhe levemente, e uma gota de suor escorria pela têmpora direita. À sua frente, Sua Excelência, o Meritíssimo Juiz de Direito, conhecido no tribunal pela sua retidão inabalável e sentenças justas, ajeitava os óculos de aro dourado enquanto examinava o processo com meticulosa atenção.
Os raios do sol da manhã atravessavam os vitrais históricos do tribunal, criando um mosaico de cores que dançava sobre o chão de mármore polido. O ambiente solene era quebrado apenas pelo ocasional sussurro entre os espectadores que encheram a sala, curiosos para testemunhar um caso que já havia se tornado motivo de burburinho pelo bairro.
"Senhor Bernardo Almeida," a voz grave do juiz ecoou pela sala, "está ciente das acusações contra si?"
Bernardo levantou-se com as pernas trémulas. Era um homem jovem, de seus vinte e poucos anos, com cabelo castanho desalinhado e olhos verdes brilhantes que carregavam uma profundidade inesperada. O seu rosto, embora marcado pelo cansaço das noites mal dormidas, ainda mantinha traços de uma genuína bondade.
"Sim, meritíssimo," respondeu ele, sua voz mais firme do que esperava, "estou ciente."
O Meritíssimo Juiz fez um gesto para que prosseguisse, seus dedos tamborilando suavemente sobre a mesa de carvalho.
"Então diga, quer falar sobre os factos?"
Foi nesse momento que algo mudou na postura de Bernardo. Ele ergueu o queixo e, num tom decidido que surpreendeu até mesmo seu advogado defensor, declarou:
"Declaro-me culpado, meritíssimo. Roubei um beijo, mas foi por pura necessidade."
Um murmúrio coletivo percorreu a sala. O Ministério Público, Digníssimo Procurador da República, um homem de meia-idade conhecido por sua eloquência impiedosa e o defensor oficioso levantaram-se abruptamente. Mas o juiz ergueu uma mão, silenciando qualquer protesto iminente.
"Explique-se, senhor Almeida," disse o juiz, inclinando-se ligeiramente para frente, com curiosidade evidentemente aguçada. "Este tribunal não está habituado a ouvir argumentos tão... peculiares."
Bernardo respirou fundo e deixou o seu olhar percorrer a sala até encontrar Clara. Ela estava sentada na terceira fila, usando um vestido azul-claro que a fazia parecer ainda mais etérea do que se lembrava. Os seus cabelos negros estavam presos num coque discreto, e seus olhos castanhos-escuros, que tantas vezes ele observara perdidos nas páginas de livros, agora estavam fixos nele.
"Meritíssimo", começou ele, ganhando força na voz à medida que as palavras fluíam, "vou contar-lhe a verdade. Há dois meses, eu estava no Largo da Misericórdia, sem rumo e sem ânimo. Tinha perdido o meu emprego depois de cinco anos de dedicação - consequência de cortes orçamentais, disseram. O meu cão, meu único companheiro desde a morte dos meus pais, estava com um tumor terminal. E eu... eu sentia-me como um homem a naufragar em mar aberto, sem conseguir ver a costa."
Fez uma pausa, engolindo em seco. O silêncio na sala era absoluto.
"Foi então que a vi. A Clara estava sentada num banco de pedra, sob a sombra de um jacarandá em flor. Tinha um livro de Pablo Neruda no colo - depois vim a descobrir que era 'Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada'. Ela sorria de forma discreta, como se estivesse a descobrir os segredos mais profundos do universo naquelas páginas."
O juiz removeu os óculos, limpando-os metodicamente com um lenço de seda, sem desviar os olhos do arguido.
"Continue", incentivou, sua voz mais suave que antes.
"Naquele momento, meritíssimo, senti o que não sentia há meses: esperança. Era como se o sorriso dela tivesse acendido uma luz dentro de mim, como se alguém me tivesse estendido uma corda no meio do meu naufrágio. Na semana seguinte, voltei ao mesmo lugar, e lá estava ela, novamente, desta vez com um livro diferente. E assim foi durante semanas. Passei a ir todos os dias, às duas da tarde, e ela aparecia sempre com o seu livro na mão, e eu observava-a, de longe, sentado num café do outro lado da praça."
Bernardo passou a mão pelos cabelos, num gesto nervoso.
"Durante todo esse tempo, nunca troquei uma palavra com ela. A Clara nem sabia que eu existia, mas o simples fato de vê-la ali, tão absorta nas suas leituras e tão serena, era como um bálsamo para a minha alma. Vê-la sorrir enquanto lia era a única coisa que me fazia lembrar que o mundo ainda tinha algo de bom, e que ainda podia haver beleza mesmo nos dias mais escuros."
Clara, ainda no seu lugar, tinha agora os olhos marejados e as mãos brincavam, nervosamente, com a alça da mala.
"Um dia, não aguentei mais", continuou Bernardo, com a voz embargada pela emoção. "O meu cão tinha morrido na noite anterior, e eu precisava... olhe, precisava agradecer-lhe. Agradecer por, sem ela saber, tinha sido a minha âncora durante aquelas semanas terríveis. Quando me aproximei, já levava um discurso inteiro preparado na cabeça. Queria dizer-lhe como o seu sorriso silencioso tinha salvado a minha vida, como a sua presença diária tinha-me dado força para continuar. Mas quando cheguei perto dela ... e ela levantou os olhos do livro olhou para mim..."
"As palavras fugiram-me todas", completou ele, com um sorriso triste. "E tudo o que consegui fazer foi... roubar-lhe um beijo."
A sala permaneceu em silêncio absoluto. Clara corou intensamente.
"Sei que foi errado", Bernardo continuou, numa voz mais firme. "Sei que violei a sua privacidade, o seu direito de escolha. Mas nada fiz com intenções de desrespeito ou de violência - foi um ato de desespero, de necessidade. Roubei-lhe o beijo porque precisava sentir, nem que fosse por um segundo, que ainda havia algo de belo no meio do caos da minha vida. Foi como um náufrago que, depois de dias à deriva, finalmente tocasse terra firme."
O juiz pousou os óculos sobre a mesa e suspirou profundamente.
"Senhor Almeida", começou ele, com uma expressão grave, "a suas palavras são, sem dúvida, sinceras e tocantes. Mas este tribunal é regido pela lei, não por sentimentos, por mais nobres que sejam. O que o senhor fez..."
"Meritíssimo", Clara interrompeu, levantando-se abruptamente. A sua voz, ainda que suave, carregava uma determinação surpreendente. "Se me permite..."
O juiz, após um momento de hesitação, acenou para que ela falasse.
"Não quero que ele seja condenado", declarou ela, olhando diretamente para o Bernardo. "É verdade que o beijo foi inesperado, e sim, inicialmente fiquei assustada e indignada. Mas..." ela fez uma pausa, um pequeno sorriso surgiu nos seus lábios, "agora, ao ouvi-lo, percebo que talvez o roubo tenha sido mais meu do que dele. Sem saber, eu roubei-lhe a solidão, dia após dia, página após página."
Na sala ecoou um suspiro coletivo. O juiz olhou para o Bernardo e para a Clara, e depois novamente para o Bernardo. O Meritíssimo deu então a palavra ao Ministério Público, que se ergueu com solenidade.
"Vossa Excelência, perante os factos apresentados e a manifestação da alegada vítima, o Ministério Público promove a absolvição do arguido."
Em seguida, foi a vez do defensor oficioso se pronunciar:
"Vossa Excelência, requeremos que se faça justiça."
O juiz ajustou os óculos e, após um momento de reflexão, proferiu, de imediato a sua decisão:
"Considerando as declarações do arguido, a posição do Ministério Público e a manifestação da alegada vítima, que expressamente declarou não se considerar como tal, declaro o arguido absolvido. Está terminada a audiência."
E assim, naquele tribunal austero, entre o tiquetaque do velho relógio e o burburinho dos presentes, nasceu a mais improvável das histórias de amor. Uma história que começou com um beijo roubado e terminou com um coração devolvido.
Dizem que, até hoje, quem passa pelo Largo da Misericórdia às duas da tarde, pode ver um casal sentado num banco sob o jacarandá, entre livros e sorrisos.
“Sim, meritíssimo, roubei um beijo, mas foi por pura necessidade"
A chave ainda funcionava perfeitamente. Entraram na cozinha onde tinham tomado milhares de pequenos-almoços, onde tinham discutido problemas dos filhos, onde tinham planeado férias que já pareciam de outras vidas.
"Às vezes precisamos de lembrar que há diferentes formas de medir o tempo. Há o tempo dos adultos, cronometrado e urgente. E há o tempo das crianças, que se mede em sorrisos e abraços", explicou a juíza Dr.ª Isabel Moreira.
O juiz ouviu com atenção, mas a cadeira traía-o: inclinava-se sempre ligeiramente para a direita, como se forçasse todas as decisões para um dos lados.
Na prática, discutia-se uma máquina de lavar roupa. A filha, Leonor, seis anos, vivia com a mãe, via o pai de quinze em quinze dias e às quartas-feiras à tarde. O pai pedia alteração ao regime para incluir uma noite adicional por semana. A mãe aceitava a alteração, com uma condição: que a roupa voltasse lavada.
A estante continuava no apartamento que partilharam durante anos. Ela saíra há oito meses, depois de uma separação silenciosa, feita de rotinas que deixaram de se sincronizar. Ele ficara. Nenhum dos dois mencionara a estante nos dias da divisão prática. Nem na devolução das chaves. Nem na última mensagem trocada.
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