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Miguel descreveu como, durante o estágio no tribunal há vinte anos, ele e Teresa tinham desenvolvido o hábito de trocar cartas - primeiro sobre processos, depois sobre sonhos e aspirações, e finalmente sobre amor. Era uma história de amor proibido, crescendo nas sombras do sistema judicial.
O Palácio da Justiça daquela pequena cidade guardava nas suas paredes centenárias histórias de todas as naturezas. Ana, escrivã de direito na 3.ª Secção Criminal há mais de uma década, preparava a sala para mais uma audiência de julgamento. Com um cuidado meticuloso, organizava os autos principais e o apenso, certificando-se de que toda a documentação necessária estava disponível para o coletivo de juízes. Era um ritual que repetia diariamente, mas que nunca perdera o seu significado.
- Dra. Teresa, o requerimento para junção aos autos já está no processo - murmurou ela, enquanto a juíza passava apressadamente pelo corredor, com a beca negra a esvoaçar levemente. Teresa, uma mulher de meia-idade com um rosto que refletia tanto a sua experiência como a sua compaixão, acenou em reconhecimento, sem parar. Para Ana, era mais um dia normal no tribunal, ou assim parecia.
Às 9h30 em ponto, como um relógio suíço, a funcionária judicial abriu as portas da única sala de audiências. Os advogados começaram a entrar, cumprimentando-se com aquela familiaridade própria de quem partilha o mesmo palco há anos. O burburinho das suas conversas enchia a sala, enquanto trocavam histórias e opiniões sobre os casos do dia. O Ministério Público, representado pela Procuradora Dra. Margarida Silva, já estava no seu lugar, a consultar uma pasta com post-its coloridos a sobressair, cada cor representando um ponto crucial do caso.
- Processo n.º 2437/14.3TXZZZ. Tribunal Criminal de Lisboa - Juízo Central Criminal - Juiz 3 - anunciou Ana formalmente, a sua voz ressoando claramente pela sala. O escrivão-adjunto João, com a sua caneta de tinta permanente na mão, documentava meticulosamente cada momento no termo da audiência, um registo oficial de tudo o que ali se passava.
A sala estava extraordinariamente cheia para um processo desta natureza - violação de correspondência e perturbação da paz de espírito, artigos 194.º e 190.º do Código Penal. Não eram crimes que normalmente atraíssem muita atenção. Os funcionários do tribunal cochichavam entre si, especulando sobre o que tornava este caso tão especial; não era todos os dias que tinham um juiz como assistente num processo-crime.
O coletivo entrou na sala, as suas becas pretas impecavelmente ajustadas, cada prega no seu devido lugar. - Podem sentar-se - indicou o Juiz Presidente Joaquim, um homem imponente na casa dos sessenta anos, após todos se terem levantado em respeito. - Declaro aberta a audiência - continuou ele, a sua voz grave e autoritária preenchendo a sala. - Está presente o arguido Miguel Santos, advogado com domicílio profissional na Rua Paiva Monteiro, n.º 100, 3.º andar, correto?
- Sim, Senhor Dr. Juiz - respondeu Miguel, levantando-se. Era um homem alto e bem parecido, nos seus quarenta e poucos anos, com um fato bem cortado e uma postura que exalava confiança, apesar da situação em que se encontrava. O seu advogado, o Dr. Ricardo Mendes, um jovem ambicioso com uma reputação crescente, dirigiu-lhe um aceno tranquilizador, um gesto subtil de apoio.
- O tribunal verifica a presença da Senhora Procuradora da República, do ilustre mandatário do arguido, e da assistente, Dra. Teresa Melo, juíza neste tribunal, acompanhada do seu ilustre mandatário, Dr. António Vasconcelos - registou o juiz presidente, cada palavra carregada com o peso da formalidade legal. - Alguma questão prévia a suscitar?
A Procuradora Margarida levantou-se, ajustando os seus óculos. - O Ministério Público nada tem a opor ao início da produção de prova, Senhor Dr. Juiz - declarou ela, a sua voz clara e firme, resultado de anos de experiência em audiências como esta.
Após os advogados também confirmarem não haver questões prévias, o juiz presidente dirigiu-se ao arguido: - Sr. Dr. Miguel Santos, vai ser ouvido na qualidade de arguido. Tem o direito ao silêncio, não sendo obrigado a responder a nenhuma pergunta que lhe façam. Compreendeu os seus direitos?
- Sim, Senhor Dr. Juiz - respondeu Miguel, com a voz firme apesar da tensão evidente nos seus ombros. - Mas desejo prestar declarações - acrescentou, para surpresa de muitos na sala.
O que se seguiu foi um relato que fez até os funcionários mais experientes do tribunal, aqueles que pensavam já ter visto de tudo, pararem o que estavam a fazer para ouvir. Miguel descreveu como, durante o estágio no tribunal há vinte anos, ele e Teresa tinham desenvolvido o hábito de trocar cartas - primeiro sobre processos, depois sobre sonhos e aspirações, e finalmente sobre amor. Era uma história de amor proibido, crescendo nas sombras do sistema judicial.
- As cartas eram deixadas no cacifo 2 da secretaria - explicou ele, cada palavra carregada de emoção. - Um sistema informal de correio interno que todos os estagiários usavam para passar notas e recados, longe dos olhos sempre vigilantes dos seus superiores. Quando descobri, há seis meses, através de uma antiga funcionária reformada, que a mãe da Dra. Teresa, na altura também funcionária do tribunal, tinha intercetado todas as minhas cartas antes que chegassem à sua destinatária... confesso que perdi o discernimento. Vinte anos de mal-entendidos, de oportunidades perdidas, tudo por causa da interferência de uma terceira pessoa - havia uma certa amargura na sua voz, mas também uma tristeza profunda.
A Procuradora Margarida interveio, a sua curiosidade aguçada: - Como teve, então, acesso à correspondência atual da assistente?
- Através do gabinete de apoio - admitiu Miguel, a vergonha colorindo as suas faces. - Quando os processos da Dra. Teresa subiam para vista, eu conseguia aceder a eles primeiro. Li cada parecer, cada promoção, cada despacho. Não para violar a sua privacidade, mas porque em cada palavra formal, em cada citação de jurisprudência, eu ainda conseguia ver aquela estagiária que acreditava que o Direito podia mudar o mundo, que a justiça era mais do que apenas leis e códigos - a sua voz tremia agora, as emoções que há tanto tempo reprimia finalmente a vir à superfície.
Teresa, sentada na assistência, mantinha os olhos fixos nos autos à sua frente, mas os seus dedos apertavam um lenço cor de laranja com força suficiente para os nós dos dedos ficarem brancos, a única indicação exterior da tempestade emocional que se desenrolava no seu interior. Anos de sentimentos não expressos, de perguntas sem resposta, tudo a desabar sobre ela naquele momento.
- Senhor Dr. Juiz - continuou Miguel, enquanto retirava um envelope amarelecido do bolso interior do seu casaco com as mãos tremendo ligeiramente -, esta é a última carta que escrevi, há vinte anos. A original, que nunca chegou ao seu destino. Está junta uma certidão do cartório notarial, a confirmar a data da sua redação. - Entregou os documentos ao oficial de diligências, que os fez chegar ao tribunal, um murmúrio de espanto percorrendo a sala.
O juiz presidente examinou os documentos com atenção, os seus anos de experiência a permitir-lhe manter uma fachada impassível apesar da natureza incomum da situação. Passou-os aos juízes adjuntos para análise. Após uma breve conferência, dirigiu-se à assistente: - Senhora Dra. Teresa, pretende exercer o seu direito de intervenção?
Teresa levantou-se lentamente, a sua roupa impecável a contrastar com a emoção crua na sua voz: - Requeiro a retirada da queixa, Senhor Dr. Juiz - declarou ela, para surpresa de todos. E depois, pela primeira vez, olhou diretamente para Miguel, os seus olhos encontrando os dele - gostaria de requerer a junção aos autos da minha resposta, vinte anos atrasada.
Um silêncio atónito encheu a sala, seguido de um zumbido de conversas abafadas. O Dr. Joaquim consultou rapidamente os adjuntos antes de declarar: - O tribunal defere ambos os requerimentos. Face à retirada da queixa, nos termos do artigo 51.º do Código de Processo Penal, declaro extinto o procedimento criminal. Para que conste, junte-se aos autos a resposta da assistente. Está encerrada a audiência – fechou o processo com tal força que o som ecoando pela sala como um ponto final numa história de duas décadas.
Enquanto organizava o processo para arquivo, Ana encontrou um pequeno papel dobrado entre as folhas, a caligrafia elegante de Teresa a saltar da página: "Aceito jantar contigo hoje. Podemos discutir a violação de correspondência. Um crime por outro - também guardei todas as tuas sentenças destes últimos vinte anos."
Ana sorriu para si mesma, carimbou o termo de encerramento, e pensou que talvez devesse começar a colecionar as histórias mais bonitas que passavam pelo tribunal, as que falavam de redenção, de segundas oportunidades, de amor que sobrevive apesar de tudo. Afinal, nem todos os dias a justiça se fazia com tanto amor.
Naquele dia, Ana saiu do tribunal com um sorriso nos lábios e uma nova perspetiva. Mesmo num lugar onde predominavam leis e factos, ainda havia espaço para a emoção e comoção, para histórias que tocavam o coração. E era isso, percebeu ela, que dava sentido a todo o seu trabalho. Não eram apenas processos e papéis - eram vidas, esperanças e sonhos. E de vez em quando, como hoje, eram também histórias de amor.
Ricardo olhou para o desenho da filha. "Lara, não te sentes confusa por teres famílias diferentes?" "Não, pai. É como ter duas equipas de futebol favoritas. Posso gostar das duas."
José olhava para o álbum com expressão nostálgica. "A Patrícia perguntou-me no outro dia se não me arrependo de ter estragado a família. E eu não soube o que responder."
"Representa tudo o que não sei como dividir. As memórias, os rituais diários, as pequenas tradições. Posso dividir móveis e brinquedos, mas como divido os momentos em que penteava o cabelo da Ema todos os dias enquanto ela se olhava no espelho?"
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