A estante continuava no apartamento que partilharam durante anos. Ela saíra há oito meses, depois de uma separação silenciosa, feita de rotinas que deixaram de se sincronizar. Ele ficara. Nenhum dos dois mencionara a estante nos dias da divisão prática. Nem na devolução das chaves. Nem na última mensagem trocada.
O processo entrou com o número 4876/24.3T8LRS, mas podia perfeitamente chamar-se "A estante do IKEA, modelo Liatorp, branco antigo". Era uma ação de divisão de coisa comum entre dois ex-namorados que viveram juntos quatro anos, não casaram, não tiveram filhos, não fizeram testamento, e no fim só queriam decidir a quem pertencia um móvel de cento e nove euros.
Tinham-se conhecido numa tertúlia literária em Campo de Ourique, numa noite em que ninguém falava de livros e ele se ofereceu para lhe segurar o guarda-chuva. Ela escrevia críticas de arte para revistas culturais; ele era técnico de som numa produtora de documentários. Apaixonaram-se depressa. No segundo mês foram viver juntos. No terceiro compraram a estante.
A audiência realizou-se numa sala abafada do Tribunal Cível de Lisboa, às três da tarde de uma sexta-feira de Maio. Ela apareceu com um vestido comprido e uma pasta de arquivo de cartão azul. Ele chegou de camisa amarrotada, com os fones ainda ao pescoço. Sentaram-se em lados opostos, sem trocar palavra.
A estante continuava no apartamento que partilharam durante anos. Ela saíra há oito meses, depois de uma separação silenciosa, feita de rotinas que deixaram de se sincronizar. Ele ficara. Nenhum dos dois mencionara a estante nos dias da divisão prática. Nem na devolução das chaves. Nem na última mensagem trocada.
— Só me dei conta semanas depois — explicou ela à juíza. — Quando fui arrumar os meus livros em caixas. A estante era nossa. Montámo-la juntos. Passámos uma tarde inteira a alinhar prateleiras e a rir do manual em sueco. Discutimos o sítio onde devia ficar. Ele cedeu. Eu escolhi. Aquilo era o centro da casa. Era o único sítio onde sempre coubemos os dois.
A juíza ouviu, com atenção. Solicitou que o réu se pronunciasse.
— A estante continua no sítio. Nunca mexi. Nem tirei os livros dela — disse ele, baixo. — Aquilo ficou ali. Nem por orgulho nem por apego. Só… ficou. Às vezes sento-me no sofá e olho para ela. Como quem olha para um tempo que ainda está lá.
O mandatário dele sugeriu indemnização compensatória: o réu pagaria cinquenta euros, ficava com a estante e encerrava-se o assunto.
— Não se trata de valor — contrapôs a autora. — É memória. Não quero dinheiro. Quero aquilo que conseguimos construir sem discutir. Uma coisa nossa que sobreviveu à rotina, ao desamor e à saída de casa. Há quem fique com a loiça. Eu só quero a estante.
A juíza consultou o Código Civil. Era, formalmente, uma coisa comum. A jurisprudência era clara: bens indivisíveis podiam ser adjudicados a um dos comproprietários mediante pagamento ao outro. Mas algo na audição dos dois contrariava o automatismo habitual.
Pediu intervalo de dez minutos. Saiu. Na sala, o silêncio regressou. Ela passou os dedos pela lombada de um livro que trazia consigo — "História da Arte Contemporânea". Ele fitava o chão. Por fim, trocavam um olhar breve. Não hostil. Só cauteloso.
Quando a juíza voltou, propôs uma solução:
— A estante será removida para um local neutro — um armazém temporário. Durante três meses, poderão ambos visitá-la. Ao fim desse tempo, decidem: ou um dos dois a fica, ou acordam vendê-la e dividir o valor.
— Podemos visitá-la juntos? — perguntou ele.
— Se assim entenderem, sim — respondeu a juíza.
Assinaram o acordo. O processo ficou suspenso. Nos meses seguintes, visitaram a estante quatro vezes. Uma vez ele levou um pano e limpou-lhe o vidro. Noutra, ela reorganizou os livros por cor. Conversaram pouco, mas começaram a deixar bilhetes entre prateleiras.
No fim do terceiro mês, entregaram um requerimento conjunto ao tribunal. Tinham decidido doar a estante à biblioteca de bairro onde se tinham conhecido. Anexaram uma fotografia: prateleiras cheias de livros infantis, crianças sentadas no chão, sol a entrar pelas janelas.
No verso da imagem, colado com fita-cola, um pequeno cartão manuscrito:
"Oferecida por duas pessoas que aprenderam que há coisas que não se partem, mesmo depois de se partirem."
"Representa tudo o que não sei como dividir. As memórias, os rituais diários, as pequenas tradições. Posso dividir móveis e brinquedos, mas como divido os momentos em que penteava o cabelo da Ema todos os dias enquanto ela se olhava no espelho?"
"O cachecol é uma herança de família," contrapôs a advogada de Beatriz. "Quando o casamento terminou, os objetos sentimentais da família Sousa deveriam ter regressado à família."
A chave ainda funcionava perfeitamente. Entraram na cozinha onde tinham tomado milhares de pequenos-almoços, onde tinham discutido problemas dos filhos, onde tinham planeado férias que já pareciam de outras vidas.
"Às vezes precisamos de lembrar que há diferentes formas de medir o tempo. Há o tempo dos adultos, cronometrado e urgente. E há o tempo das crianças, que se mede em sorrisos e abraços", explicou a juíza Dr.ª Isabel Moreira.
O juiz ouviu com atenção, mas a cadeira traía-o: inclinava-se sempre ligeiramente para a direita, como se forçasse todas as decisões para um dos lados.
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