A cadela não estava presente, mas parecia sentada ali entre ambos, com os olhos grandes e a cabeça tombada, à espera da próxima decisão dos humanos.
O processo deu entrada como "ação declarativa comum", mas nas entrelinhas trazia tudo menos comum: afetos feridos, lealdades a prazo, um cão que servia de metáfora, e dois ex-companheiros que tentavam decidir o futuro de uma relação que já não era deles — mas ainda era do animal.
A autora chamava-se Inês Vaz, 36 anos, assistente editorial numa editora universitária. A sua linguagem era feita de adjetivos minuciosos, cadernos Moleskine com marcações de páginas, e uma espécie de elegância defensiva que só quem já escreveu sobre os outros durante anos aprende a aplicar a si própria. O réu era Miguel Sarmento, 40 anos, arquiteto freelancer, mais confortável em estiradores do que em conversas, e com o ar constante de quem está prestes a pedir desculpa por existir — ou por não ter sabido ficar.
Viveram juntos cinco anos. Conheceram-se numa livraria em 2018, quando pegaram no mesmo livro ao mesmo tempo. Discutiram durante dois minutos sobre quem tinha tocado primeiro, trocaram contactos com o pretexto de "um café para falar de arquitetura e literatura", e nunca mais dormiram em casas separadas. A Olívia chegou no segundo ano. Uma cadela resgatada do canil municipal de Sintra, mestiça de beagle e podengo, com um faro apurado para os nervos das pessoas.
— Adotámo-la como se ela fosse um projeto comum — explicou Inês à juíza. — Mas ao contrário das plantas, não morreu.
Separaram-se no início de 2024. Sem gritos. Sem traições. Sem sobressaltos jurídicos. Ela ficou no apartamento. Ele mudou-se para uma casa alugada em Caxias, com vista para os telhados. Levaram o mínimo: ela as roupas, os livros e o sofá. Ele a guitarra, o portátil e a bicicleta. A Olívia ficou com Inês, por defeito. Mas Miguel manteve a chave.
— Não combinámos nada. Simplesmente continuou a vir vê-la — contou Inês. — Trazia-lhe brinquedos. Passeava com ela. Dava-lhe bolachas que ela não podia comer por causa da gastrite. E depois ia-se embora. Como se fosse só isso: uma visita a um animal.
O problema é que não era só isso. E Inês sabia. E Miguel também.
Passaram-se seis meses. A Olívia começou a reagir à campainha com excitação exagerada. Rosnava aos vizinhos, dormia junto à porta. Inês começou a ter enxaquecas recorrentes.
— Senti que estávamos as duas em trânsito. Ela à espera dele. Eu à espera que ela parasse de o esperar.
Foi então que intentou a ação: queria pôr ordem. Não era pela posse. Era pela previsibilidade. Miguel respondeu com um pedido reconvencional: queria estabelecer um regime regular de visitas. Reivindicava a qualidade de "co-tutor afetivo".
A audiência começou numa manhã húmida de Abril. A juíza, mulher de trato seco e olhos que não perdiam tempo, perguntou ao réu:
— Sabe que a Olívia, juridicamente, é um bem móvel?
— Sei — disse ele. — Mas não é uma coisa. É o ser mais constante da minha vida nos últimos quatro anos.
A advogada de Inês insistiu que o contacto irregular era perturbador, tanto para o animal como para a dona, e sugeriu que o réu, se assim o entendesse, podia adotar outro cão. Miguel respondeu com algo entre a mágoa e o pudor:
— Não se adota uma Olívia só porque se perdeu a primeira.
A juíza pediu o relatório da perita da DGAJ, que tinha visitado a casa da Inês e observado a dinâmica com o animal. O documento dizia:
"A cadela reage com excitação ao som de passos na escada. Quando o réu entra, salta, lambe-lhe as mãos, abana o corpo todo. Quando ele sai, deita-se junto à porta. Não há sinais de descompensação grave, mas há um claro padrão de expectativa e frustração."
Seguiu-se uma pausa. Ninguém falou. A cadela não estava presente, mas parecia sentada ali entre ambos, com os olhos grandes e a cabeça tombada, à espera da próxima decisão dos humanos.
Foi a juíza quem quebrou o silêncio.
— Não sendo legalmente exigível um regime de visitas, há espaço, hoje, para reconhecer a dimensão afetiva dos animais. É esse o espírito do artigo 201-B do Código Civil, que lhes reconhece natureza sensível. Mas para decidir, é preciso saber: estão dispostos a continuar a partilhar algo com regularidade? Ou apenas a prolongar uma ausência em capítulos?
Inês hesitou. Depois respondeu, com um tom mais brando:
— Eu não quero afastá-la dele. Só quero que ela não viva na confusão em que vivemos nós nos últimos meses. Quero que saiba quando ele vem. Quando volta. E que isso não dependa do humor do dia.
Miguel assentiu, quase impercetivelmente.
— Posso vir às quartas-feiras. E levá-la ao domingo de manhã. Fico com ela até às seis da tarde. Levo a ração dela. Trago-a com o mesmo peitoral. Não mudo rotinas.
Foi lavrado acordo: regime provisório de convivência animal. Quartas-feiras à tarde e domingos alternados, com entrega e devolução feitas por contacto escrito. Reavaliação ao fim de quatro meses.
Antes de sair, Miguel perguntou se podia entregar pessoalmente o brinquedo preferido da Olívia. A juíza autorizou. Era um ouriço de borracha com orelhas comidas. Inês guardou-o na mala sem comentar.
Na semana seguinte, Miguel tocou à campainha às 17h00. Inês abriu. A Olívia correu. Saltou. Uivou com alegria. Depois, deitou-se entre os dois. Inês olhou para Miguel.
— Ficas para jantar?
Miguel respondeu sem hesitar:
— Só se ela aprovar o menu.
A Olívia, entretanto, já estava sentada junto ao fogão. Como sempre.
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"Representa tudo o que não sei como dividir. As memórias, os rituais diários, as pequenas tradições. Posso dividir móveis e brinquedos, mas como divido os momentos em que penteava o cabelo da Ema todos os dias enquanto ela se olhava no espelho?"
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