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O juiz ouviu com atenção, mas a cadeira traía-o: inclinava-se sempre ligeiramente para a direita, como se forçasse todas as decisões para um dos lados.
No Tribunal de Família de Almeirim, a cadeira do juiz partiu-se em plena conferência de pais. Não com estrondo, mas com um estalido seco, inesperado, quase cerimonial. Ficaram todos suspensos: oficial, advogados, psicóloga técnica, mãe e pai. Silêncio absoluto — desses que só se ouvem nos segundos imediatamente antes de algo correr mal.
Foi o juiz quem o quebrou:
— Aparentemente, esta cadeira não subscreve a guarda partilhada.
Houve quem se risse. A oficial não. A advogada também não. Mas o requerido soltou uma gargalhada breve, que disfarçou com a mão no rosto. O juiz levantou-se com esforço, e tentou continuar em pé, mas depressa cedeu à insistência da funcionária, que lhe trouxe duas cadeiras do bar. Uma estava rachada. A outra bamboleava com o peso do braço. Por fim, assentou-se numa de plástico duro, sem apoio de braços, que exigia contenção de movimentos e alguma humildade postural.
— Vamos por partes. O que temos aqui não é um pedido de guarda exclusiva — disse. — É um pedido de reorganização completa da vida de uma criança com oito anos, porque os pais já não sabem como comunicar entre si.
O pai, funcionário da câmara, pediu alteração do regime: queria residência alternada semana sim, semana não, depois de dois anos em que a filha estava com a mãe de segunda a sexta, e com ele nos fins-de-semana. Justificava com os horários mais flexíveis, a mudança para uma casa nova com quarto só para a menina e o facto de agora trabalhar em regime híbrido. Dizia que só queria ser mais do que "o pai do fim-de-semana".
A mãe, professora primária, opunha-se. Afirmava que a filha precisava de estabilidade, e que a alternância semanal era desaconselhada pelo relatório da psicóloga escolar, que alertava para os sinais de ansiedade crescente da criança sempre que era necessário fazer o "transporte emocional" entre casas.
A psicóloga nomeada pelo tribunal confirmou as dificuldades da menor em gerir transições. Mas deixou um aviso: "mais do que o regime, importa a qualidade da cooperação parental". E citou a própria criança: "Gosto de estar nos dois lados, só não gosto quando eles falam como se estivessem em lados diferentes".
O juiz ouviu com atenção, mas a cadeira traía-o: inclinava-se sempre ligeiramente para a direita, como se forçasse todas as decisões para um dos lados.
Quando os argumentos voltaram à velha história do aniversário em que a mãe não deixou o pai entrar na festa porque "não tinha avisado previamente" — e ao lanche em que o pai foi buscar a filha com dez minutos de atraso para depois a entregar meia hora mais tarde — o juiz interrompeu.
— A cadeira está cansada. Eu também. E, ao que parece, a vossa filha ainda mais.
Pediu uma pausa de quinze minutos. Saiu da sala em passo curto. Os pais ficaram sozinhos na mesa do fundo. Não falaram logo. Depois, a mãe disse:
— Ela sente-se dividida. E não é por causa da roupa, ou dos brinquedos.
O pai assentiu com um gesto. Pegou no telemóvel, mostrou uma fotografia da filha a segurar um gato.
— Está com ele desde o mês passado. Quer levá-lo para os dois lados. Eu disse que sim.
— Eu também — disse a mãe. — Mas ele ainda mia à noite.
Voltaram à sala.
A oficial tinha trazido uma nova cadeira do gabinete da juiz da sala ao lado — mais estável, mais pesada, menos simbólica.
A audiência terminou com um acordo revisto: residência principal com a mãe, pernoitas progressivas com o pai, partilha semanal das tardes de quarta-feira, acompanhamento psicológico conjunto e um compromisso por escrito para não falarem da mãe ou do pai em frente à criança.
E um aviso do juiz:
— Tragam-me novidades boas quando voltarem. E se a cadeira aguentar, ainda vos caso outra vez.
Saíram em silêncio. No final das escadas, a mãe perguntou:
— Ela vai gostar do nome Mimo para o gato?
O pai respondeu:
— Acho que sim. Mas ainda vai sugerir outro. E vai obrigar-nos a decidir os dois.
Ricardo olhou para o desenho da filha. "Lara, não te sentes confusa por teres famílias diferentes?" "Não, pai. É como ter duas equipas de futebol favoritas. Posso gostar das duas."
José olhava para o álbum com expressão nostálgica. "A Patrícia perguntou-me no outro dia se não me arrependo de ter estragado a família. E eu não soube o que responder."
"Representa tudo o que não sei como dividir. As memórias, os rituais diários, as pequenas tradições. Posso dividir móveis e brinquedos, mas como divido os momentos em que penteava o cabelo da Ema todos os dias enquanto ela se olhava no espelho?"
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