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Salome, a francesa que luta pela Geórgia

Enquanto os protestos continuam e a repressão se agrava nas ruas de Tbilissi, a presidente recusa deixar o cargo e tornou-se a voz da resistência pró-europeia. Conheça Salome Zourabichvili, 72 anos, a georgiana que nasceu em França e já foi para a rua com os manifestantes.

No dia 28 de novembro, quando os protestos pós eleitorais se tornavam cada vez mais fortes, os manifestantes assistiram a uma cena insólita, por qualquer padrão: a presidente do país, Salome Zourabichvili, de 72 anos, que a Reuters descreve como de aparência "frágil", juntou-se aos manifestantes. A certa altura, abordou a polícia de choque, e, com calma aparente, pôs uma mão no escudo, outra no agente, e desafiou-os: "O vosso dever é proteger o estado e os seus cidadãos. O vosso dever não é dispersar as pessoas. Servem a Rússia, ou a Geórgia?" E continuou: ""Não respondem perante a vossa presidente? Não pensam no futuro, nos vossos filhos, ou até nos vossos antepassados?" Os manifestantes gritaram "Salome, Salome". Para quem protestava, a presidente tinha outra mensagem: "Estou com o povo. A resistência começa agora e não terminará até que haja novas eleições. Estou aqui com o povo e estarei onde puder, sempre."

O desafio não travou o deslizar para mais e mais violência. Horas antes de Zourabichvili se ter juntado à manifestação, o Sonho Georgiano, o partido pró-russo que venceu as eleições legislativas - aparentemente com recurso a fraude em massa - tomara a decisão de adiar para 2028 as negociações com a União Europeia com vista à adesão. A mensagem foi clara: o caminho é pró-russo, e não pró-europeu. Desde então, as manifestações em Tbilissi, a capital, intensificaram-se, a repressão violenta também. As autoridades têm usado canhões de água, gás lacrimogéneo e violência pura e dura contra os manifestantes. O líder do partido de oposição, Nika Gvaramia, foi detido no dia 4, com um vídeo a circular da detenção, nas instalações do partido Coligação pela Mudança: vê-se Gvaramia a ser espancado, ficar inconsciente, e a ser levado num carro da polícia. Há relatos de outras detenções e de simples desaparecimentos. As instalações dos partidos da oposição, e até residências de familiares seus, foram buscadas, sem mandado. E alguns manifestantes acusam até elementos das forças policiais de serem, não georgianos, mas agentes russos enviados pelo país vizinho. E surgiram junto às manifestações os habituais titushki, mercenários à civil, russos, que agem como provocadores ou como agressores dos manifestantes: também intervieram na revolução Maidan na Ucrânia, em 2014, ou, mais recentemente, nas eleições presidenciais na Moldova. São um clássico da agitação externa russa. 

Dias depois, Salome deu uma entrevista ao Euronews, do palácio presidencial. No dia 5, outra ao Le Monde, em quem disse "este é um momento vital para o país e espero que o resultado não seja trágico". Tem-se desdobrado em declarações a partir do palácio presidencial, que já disse que não tenciona abandonar. O seu mandato terminaria a 29 de dezembro. Ao Le Monde, explicou que "as eleições legislativas de 26 de outubro, marcadas por frade em massa, são inválidas. Por extensão, nem o parlamento nem o governo podem tomar posse, nem o presidente que irão eleger a 14 de dezembro. É tudo uma espécie de ficção, o resultado de uma sucessão de ilegalidades".

O poder do presidente, na Geórgia, é pouco mais do cerimonial e Salome sabe-o. Disse, aliás,  "não tenho poder além do da palavra e de representação". Mas foi esse que escolheu usar, tornando-se um inesperado rosto da resistência ao deslizar do governo, que diz ilegítimo, em direção à órbita do Kremlin.

Uma georgiana inesperada

A primeira vez que Salome pôs os pés na Geórgia, em 1986, tinha já 14 anos. Cresceu numa família de exilados, que fugiram após a tomada do país pelo Exército Vermelho, em 1921. Nascida em 1952, costumava contar que o país ancestral do outro lado da cortina de ferro parecia uma entidade mítica, distante, de onde nem notícias de jornal ou cartas chegavam. Salomé cresceu, na verdade, francesa. Formou-se em Sciences Po, depois em Columbia (Estados Unidos da América), onde teve como professor Zbigniew Brzezinski, uma das figuras maiores da política externa americana nos anos 60 e 70, e defensor de uma política de contenção dos soviéticos, em particular na Europa de Leste. Salome enveredou pela carreira diplomática, e evoluiu nas chancelarias francesas. Foi, aliás, depois de outros postos, embaixadora de França em Tbilissi, em 2003. Após um acordo diplomático entre os dois países lhe ter permitido ter também nacionalidade georgiana, tornou-se ministra os Negócios Estrangeiros... da Geórgia. A mudança, aqui, foi de país e de carreira: pela primeira vez envolveu-se na política. Fundou um movimento, um partido (O Caminho da Geórgia), em 2005, mas sem grande sucesso e no qual só ficaria até 2010. Em 2016 foi eleita como deputada independente e em 2018 renunciou à cidadania francesa para poder concorrer pela primeira vez ­à presidência da Geórgia – e ganhar. De resto, cok o apoio do Sonho Georgiano, que, na altura, estava ainda longe de enveredar abertamente pela opção pró-russa que agora escolheu.

O poder da presidente, na Geórgia, é residual após a última revisão constitucional. Mas isso não impediu a divergência crescente com o atual governo, que várias vezes a tentou proibir de viajar para o estrangeiro, e que em 2023 tentou um processo de impeachment contra Zourabichvili, mas sem sucesso. A tensão foi em crescendo tornando-se choque frontal quando o SG aprovou a lei do "agentes estrangeiro", decalcada do regime russo, que considera agentes estrangeiros quaisquer organizações que recebam mais de 20% de fundos de fora – uma forma de medir, controlar e limitar a sociedade civil. Zourabichvili vetou a lei, mas o parlamento voltou a aprová-la, contornando o veto. Entrou em vigor em agosto. O afastamento tornou-se evidente: a presidente tornou-se um ator político pelo caminho pró-europeu, contra um governo cada vez mais longe das reformas exigidas pela EU, no que toca a justiça, regulação, separação de poderes e direitos humanos.

O processo acabou com a presidente nas ruas em protestos, recusando inclusive a saída que o governo lhe prepara. Esta semana, esteve em França, na inauguração da catedral de Notre Dame. Encotrou-se com Donald Trump e Emanuel Macron e publicou no X: "Expondo as eleições roubadas e a repressão extremamente alarmante contra o povo da Geórgia." Deslocou-se em seguida à Polónia, numa visita de trabalho. A busca de apoio externo para os protestos tornou-se outra via para evitar a russificação em curso. Entretanto, na Geórgia, o número de detidos durante os protestos rondará os 400.

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